quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

RACISMO NO FUTEBOL AINDA PERSISTE: TINGA QUE O DIGA

Tinga, racismo e a colonialidade do poder

  
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“Trocaria um título pela igualdade entre raças”.

Tinga, jogador negro, volante do Cruzeiro, foi alvo de manifestações racistas da torcida do Real Garcilaso, nesta quarta feira (12), em jogo válido pela Copa Libertadores, em Huancayo, no Peru.
Pouco depois de sua entrada em campo, substituindo o meia Ricardo Goulart, os torcedores do time peruano começaram a importunar o jogador cruzeirense a cada toque seu na bola, imitando sons de macaco num claro ato racista contra o brasileiro.

“Fico muito chateado. Joguei quatro anos na Alemanha e nunca passei por isso. Agora acontece em um país parecido com o nosso, cheio de mistura. Trocaria um título pela igualdade entre raças e classes e respeito”, disse o jogador em entrevista à emissoras de rádio.

As cenas rodaram o mundo e  ganhou mais destaque que os próprios resultados dos jogos. A Confederação Sul-Americana de Futebol (CONMEBOL) se pronunciou imediatamente após o ocorrido por meio da conta oficial da Copa Libertadores no Twitter:

Queremos tranquilizar os torcedores do Cruzeiro. A Confederação julgará o caso e todas as medidas possíveis. Sem dúvidas, sabemos que é repudiável“.

Los Incas e a Colonialidade do Poder

A Asociación Civil Real Atlético Garcilaso é um dos clubes mais jovens do Perú, fundado em 2009 e tem sede em Cuzco, uma cidade do Vale de Huatanay, conhecido como o Vale Sagrado dos Incas, na região dos Andes. Era o mais importante centro administrativo e cultural do Tahuantinsuyu, o Impérico Inca.

E que ironia, logo no Peru, terra mãe de Anibal Quijano, sociólogo e pensador humanista, conhecido por ter desenvolvido o conceito de “Colonialidade do poder”.

A colonialidade do poder é o padrão de poder que se constitui juntamente com o capitalismo moderno/colonial eurocentrado, que teve início com a conquista da América em 1492. O world-system moderno/colonial, que se constituiu a partir daquela data, deu origem a um novo padrão de poder mundial fundamentado na ideia de raça, que passou a classificar a população mundial, produzindo identidades raciais historicamente novas que passariam, por sua vez, a ficar associadas a hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes aos padrões de dominação (QUIJANO, 2005)

Todos seríamos, no processo “civilizatório” dirigido pelos colonizadores, contaminados com os ideais de primazia e superioridade europeia versus a subalternidade e inferioridade indígena, africana e por consequência, de sua descendência. Essa mentalidade, no contexto da demanda cotidiana pela sobrevivência incutiu em nossos povos valores depreciativos de nós mesmos indígenas, negros, latino-americanos.

A postura infeliz e equivocada da torcida demonstra o quando o colonialismo nos deixou marcas na consciência e na mentalidade. Os descendentes dos colonizadores – os mesmos que destruíram a avançadíssima civilização Inca, permanecem no comando político e/ou econômico das Américas. O racismo sempre foi e continua sendo elemento central na estrutura de dominação das elites racistas em nosso continente. O Brasil, país da democracia racial, que o diga!
Importante registrar o quão curioso é a reação hipócrita dos meios de comunicação que condenam o racismo dos outros (Peru), ao mesmo tempo em que promove uma cotidiana desigualdade e violência racial no Brasil. Foram inadmissíveis e absolutamente desrespeitosos os insultos dirigidos a Tinga. Mas é preciso dizer que são muito piores as formas como o racismo se manifesta cotidianamente no Brasil: nos números de corpos presos, espancados, desaparecidos ou assassinados e em todas as dimensões da desigualdade social. E onde está a imprensa para construir uma cobertura descente?
Povos irmãos, de matrizes raciais fundantes da humanidade e com história de violência e opressão também comuns, deveriam se reconhecer e irmanar não apenas em momentos festivos, mas principalmente na busca um mundo mais justo. Essa ainda é uma grande tarefa!



 

 
 
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A Restinga é um dos bairros mais populosos de Porto Alegre. O censo de 2010 indicava que sua população era de 51.560 moradores. Sua formação, a partir dos anos 60, tem a ver com a urbanização da cidade – e tem a ver também com exclusão social. Para abrir avenidas e solucionar os problemas de habitações insalubres, moradores das Vilas Theodora, Marítimos, Ilhota e Santa Luzia foram removidos para um novo bairro do extremo sul porto-alegrense, a 22 quilômetros da região central.

Foi na Restinga que dona Nadir criou seus quatro filhos com o salário de faxineira. Quando pegava o ônibus de manhã cedo, pensava: “Quando será que vou parar de trabalhar?” Numa tarde de 1997, seu filho Paulo César foi encontrá-la no serviço. Tinha 19 anos, estava acompanhado de uma equipe de televisão e vinha contar de seu primeiro salário como profissional: 2,5 mil reais.

Tinga já era uma revelação do time do Grêmio, aparecendo ao grande público com um golaço contra o Sport Recife. Diante do repórter Régis Rösing, chorou ao ver a mãe limpando chão.
- Já prometi pra ela que isso aí vai mudar, e vai mesmo, disse, deixando bem claro: “trabalhar não é vergonha pra ninguém”.

A vida da família mudou rapidamente, porque Tinga logo se tornaria um jogador importante para o Grêmio, ao ponto de sua torcida reproduzir, na arquibancada do Olímpico, o grito de guerra da Estado Maior da Restinga, uma das mais populares escolas de samba de Porto Alegre:

- Tinga, teu povo te ama!

Tinga mudou a condição de vida da família rapidamente, mas há outras coisas que demoram a mudar. Num jogo de 2001, Ronaldinho fez um gol pelo Grêmio e correu para abraçar Tinga no banco de reservas: “Esse gol é pra nós, que somos da vila”, disse, num episódio não registrado mas muito conhecido em Porto Alegre. Ser da vila e, principalmente, ter a pele bem escura, ainda representam um problema.

Carregando no nome o bairro onde nasceu e seu criou, Tinga é respeitado em todos os clubes por onde passou e é ídolo de vários deles. No Internacional, afirmar que foi bicampeão da Libertadores e autor do gol do título em 2006 é, na verdade, diminuir sua importância histórica na reconstrução do clube. Jogador de fibra, presente em todos os cantos do campo, pegador e goleador, Tinga foi um dos jogadores mais importantes do Inter no período entre 2005 e 2006. No Borussia, da Alemanha, a reverência e o respeito com que dirigentes, torcedores e companheiros se despediram em 2010 é a melhor prova da trajetória que construiu.

Tinga sempre foi um jogador sério, dentro e fora de campo. Um treinador do Internacional disse certa vez que Tinga puxava os companheiros pelo exemplo, dedicando-se nos treinos e nas partidas como se estivesse em início de carreira. No Cruzeiro, o técnico Marcelo de Oliveira afirmou que o jogador era referência para os mais jovens do grupo. Foi assim em todos os clubes.

Nada disso, porém, foi suficiente para mudar o preconceito, que nos estádios de futebol emerge na vazão dos sentimentos levianos que expomos quando em multidão. Tinga, que em 2005 já havia ouvido imitações de macaco quando pegava na bola no estádio Alfredo Jaconi, teve de ouvir a ofensa mais uma vez na noite desta quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014, no Estadio de Huancayo, no Peru.
Ao final do jogo entre Cruzeiro e Real Garcilaso, uma equipe de TV pediu que Tinga comentasse o episódio. Ele tomou ar, respirou o ar da Restinga, o cheiro do colo da mãe Nadir, os golaços que fez, os títulos que conquistou, o respeito que adquiriu no futebol, todas as entrevistas ponderadas e inteligentes que deu ao longo da carreira, e disse com a serenidade e a altivez dos grandes:

- Se pudesse não ganhar nada e ganhar esse título contra o preconceito, eu trocaria todos meus títulos por igualdade em todos os lugares, todas as áreas, todas as classes.

Não precisa nos dar mais nada em troca, Tinga. Teu exemplo é o suficiente.
Daniel Cassol


 

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