quinta-feira, 15 de maio de 2014

DOSSIÊ VÔLEI: O JOGO SUJO DA MÁFIA ESPORTIVA

DOSSIÊ VÔLEI: Processos mostram privilégios em negócios com empresas de ex-dirigentes da CBV

Por Lúcio de Castro, para o ESPN.com.br

Os negócios da Confederação Brasileira de Vôlei (CBV) estão sob poderosa lente de aumento.
Relações estreitas e negócios de alto volume com empresas abertas poucos meses antes da parceria. Os acionistas dessas empresas: ex-dirigentes da CBV. O ônus das operações para a instituição e o bônus para tais firmas. Contradições. Acordos judiciais de frágil sustentação envolvendo essas empresas. No coração de tudo isso, um farto duto de dinheiro público a jorrar com "a ausência de instrumentos efetivos de controle e acompanhamento", como afirma um antigo relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) ao qual a reportagem teve acesso. O balanço financeiro de 2011/12 da CBV indica R$ 24 milhões a receber do Banco do Brasil e mais de R$ 16 milhões de reais do Governo Federal.
Por enquanto, só existe uma certeza: o fio do novelo dos negócios do vôlei brasileiro começa a ser puxado. Os primeiros movimentos revelam ingredientes de um folhetim daqueles em que ninguém pode dizer ao certo onde vai chegar.
A observação de um repetido modo de operar através de empresas cujos sócios são ex-dirigentes da Confederação Brasileira de Vôlei (CBV) gerou uma investigação que corre em sigilo. A existência de dinheiro de origem pública nas movimentações foi o marco inicial da apuração em curso e aumenta o teor explosivo dos próximos passos a serem investigados.
O ponto de partida das investigações foi a existência de um mesmo modus operandi, constatado em ações trabalhistas que correm na justiça do Rio de Janeiro.
Chamou atenção o fato das empresas apontadas nos processos pertencerem a ex-dirigentes da CBV.
Como no caso da SMP Consultoria Esportiva e Representações LTDA.
Em sua constituição societária, de acordo com o documento obtido por esta reportagem na Junta Comercial do Rio, a SMP, aberta em agosto de 2001, tem 99% das cotas nas mãos de Marcos Antônio Pina Barbosa, superintendente da CBV nos anos 90 e de volta em 2013, após a saída do presidente da entidade, Ary Graça Filho, para assumir a presidência da Federação Internacional de Vôlei (FIVB).
Arte ESPN
Dossiê Vôlei
Dossiê Vôlei: Documento mostra nome de Marcos Pina e sua mulher como sócios da empresa SMP
Questionada sobre tal relação pela reportagem, a CBV, através de sua assessoria de imprensa, respondeu que "Marcos Pina foi Superintendente Geral da CBV de 1997 a 1999, quando solicitou afastamento por iniciativa própria. Se manteve sem qualquer vínculo empregatício com a entidade até setembro de 2013, quando foi recontratado como Superintendente Geral pela nova gestão".
No entanto, de acordo com o site da própria CBV, em comunicado de 18 de setembro de 2013, Marcos Pina foi superintendente da confederação entre 1997 e 2000.
Sem informar a criação da empresa, o site da entidade informa que "entre o período de 2001 e 2006 foi responsável pela organização dos Mundiais de vôlei de praia e indoor".
Ainda de acordo com o site, de 2007 a 2011 "criou o site VôleiBrasil e hoje é Grande Benemérito e Conselheiro da CBV".
Em setembro de 2013, o site informa que Marcos Pina assumiu o cargo de superintendente geral da CBV, "com status de CEO". Na Receita Federal, o CNPJ da empresa SMP Consultoria Esportiva e Representações LTDA. segue ativo.
Arte ESPN
Dossiê Vôlei
Dossiê Vôlei: site da CBV anuncia que Marcos Pina assumiu o cargo de Superintendente Geral em 18 de setembro de 2013
Em algumas dessas ações judiciais que chamaram atenção, como em uma de abril de 2010, o reclamante litiga contra a CBV e contra a SMP, alegando que, apesar de contratado da SMP, sempre tinha sido empregado da CBV.
Chamou a atenção que, embora em uma ação como essa, CBV e SMP tivessem aparentes interesses conflitantes, antes mesmo da ação ser julgada, ainda na fase de instrução, a CBV fez um acordo com o reclamante. A SMP, de Marcos Pina, não teve ônus no acordo, ficando a CBV responsável pelo pagamento de R$ 144.000,00. A entidade máxima do vôlei pagou ainda R$ 79.061,14 entre imposto de renda, INSS e custa da ação, num total de R$ 223.061,14.
Questionada pela reportagem sobre a razão para tal acordo na Justiça, deixando a SMP sem qualquer ônus, a CBV respondeu que " a SMP foi excluída da posição de ré antes da finalização do processo, por decisão judicial, restando apenas a CBV como ré".
Não é fato que a SMP tenha sido excluída por decisão judicial. A resposta não corresponde ao correto sobre o ocorrido, já que a conciliação acontece na Justiça entre as partes antes da decisão judicial e naturalmente só ocorre se todas as partes aceitarem, aí sim se transformando em decisão judicial.
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Dossiê Vôlei
Dossiê Vôlei: Documento mostra acordo judicial feito pela Confederação Brasileira de Vôlei na Justiça do Trabalho
Os aparentes interesses conflitantes entre CBV e SMP na ação também não impediram de ambas estarem representadas pelo mesmo escritório de advocacia.
Nessa mesma ação de abril de 2010, chamou também atenção na investigação em curso um outro nome. Fábio André Dias Azevedo consta como o representante da CBV na disputa judicial.
Poucos meses depois, por apuração da reportagem, Fábio André Dias Azevedo já é encontrado como um dos acionistas da S4G, aberta no dia 10 setembro de 2010.
No balanço financeiro de 2011/12, a entidade informa que "em dezembro de 2010 contratou a empresa S4G por notória especialização para prestação dos serviços de planejamento, produção e comercialização dos eventos de voleibol de quadra e praia".
A "notória especialização da S4G", constante na justificativa da CBV para a contratação esbarra nas datas, já que foi aberta em setembro de 2010, como consta na Receita Federal, e contratada em dezembro de 2010.
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Dossiê Vôlei
Dossiê Vôlei: Documento mostra anúncio da contratação da S4G pela Confederação Brasileira de Vôlei
Questionada pela reportagem sobre tal relação comercial, a CBV respondeu que "A S4G é uma empresa reconhecida no mercado. Já trabalhou para outras modalidades e eventos esportivos, entre eles, os Jogos Mundiais Militares, quando foi vencedora de licitação, tanto para o vôlei como para outros esportes". A reportagem tentou contato com o representante da S4G nos endereços conhecidos sem obter sucesso.
Além do CNPJ da citada empresa aberta em setembro de 2010 como S4G Gestão de Eventos, utilizando o mesmo endereço, a empresa diversificou seus CNPJs em 2011. No mesmo dia 12 de abril de 2011, foram abertas com dois CNPJs distintos a S4G Gestão de Negócios e ainda um outro para a S4G Planejamento e Marketing. Os três CNPJs da S4G tem como sede a cidade de Saquarema.
No mesmo prédio onde constam os três CNPJs da S4G está ativo o CNPJ da AGF Assessoria e Participações, de propriedade de Ary Graça, presidente da CBV até 2012, quando saiu para assumir a presidência da Federação Internacional de Vôlei. O centro de treinamento da CBV também fica em Saquarema.
O estabelecimento de vultosos negócios por parte de entidades com empresas recém abertas, de propriedade de pessoas relacionadas com essas instituições, não compõe ilegalidades, embora chamem atenção. Tais histórias não chegam a ser novidade no esporte brasileiro.
A investigação faz lembrar fato semelhante ocorrido em outra entidade esportiva que gerou um escândalo com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Em 19 de novembro de 2008, a seleção brasileira de futebol jogou contra Portugal, em Brasília, em amistoso contratado pela Ailanto Marketing, constituída cinco meses antes, em 29 de maio de 2008, o que chamou atenção.
O fio do novelo. Foram essas investigações posteriores que comprovaram ligações de Ricardo Teixeira com a Ailanto. E por fim culminaram com a queda de Ricardo Teixeira.
Fonte: http://espn.uol.com.br/noticia/391752_dossie-volei-processos-mostram-privilegios-em-negocios-com-empresas-de-ex-dirigentes-da-cbv


terça-feira, 13 de maio de 2014

Essa Confraria Masculina chamada Futebol: "Se a bandeirinha é bonitinha, que vá posar na Playboy"

Crônica / Matheus Pichonelli

"Se a bandeirinha é bonitinha, que vá posar na Playboy"

A agressão verbal contra a auxiliar Fernanda Uliana prova que o futebol é o penúltimo reduto da misoginia. O último é o jornalismo boleiro.
por Matheus Pichonelli — 
bandeirinha.jpg"Reportagem" do jornal Extra sobre a bandeirinha Fernanda Uliana
O futebol é o penúltimo reduto da misoginia. O último é o jornalismo boleiro. Misoginia, para quem não sabe, é a palavra designada pelos gregos para classificar o “horror e a aversão” a tudo o que é ligado ao feminino e às mulheres.
Essa aversão ganhou ares de alarme após a vitória do Atlético Mineiro sobre o Cruzeiro no domingo 11. Desde então, nenhum assunto foi mais comentado no mundo futebolístico do que a existência da bandeirinha Fernanda Colombo Uliana. Nem mesmo os erros cometidos por ela durante a partida e referendados por um homem, o árbitro Heber Roberto Lopes, entre eles um pênalti não marcado e um impedimento inexistente para a equipe azul celeste. O assunto era outro: a sua simples presença da bandeirinha em um local sagrado para os homens.
Basta uma simples busca no Google (“bandeirinha gata é clicada em pose indiscreta”, “conheça a linda e polêmica bandeirinha”) e as deferências dos ogros do esporte sobre o corpo estranho em um grutão construído por homens, entre homens e para os homens. “Se ela é bonitinha, que vá posar na Playboy. No futebol tem que ser boa de serviço”, chegou a dizer o diretor de futebol do Cruzeiro, Alexandre Mattos, após o clássico mineiro.
Em sua demonstração pública de misoginia, Mattos se esqueceu de lembrar que os erros da bandeirinha foram referendados pelo chefe da arbitragem. Um homem, portanto. Mas, ao fim do jogo, nem Mattos nem ninguém mandou que Heber Roberto Lopes fosse posar na Playboy. Ou que fosse consertar motor de carro. Ou plantar
laranja. Faz sentido: quando o árbitro erra, ele é poupado até no xingamento. A ofensa é direcionada à aleivosia da sua mãe ou à fidelidade da sua esposa. Nunca a ele (a não ser, claro, que seja negro).
Pela repercussão, os erros da bandeirinha não colocaram a arbitragem em xeque, mas sim a capacidade feminina de se instalar em um campo de domínio masculino. Uma coisa é mulher jogar futebol. Quando isso acontece, ninguém se comove: os estádios não lotam, a imprensa esportiva dá de ombros, os patrocinadores fazem pouco caso. Mas uma mulher arbitrando no quintal masculino é mais que uma concessão: é uma ofensa. Porque tudo no mundo futebolístico é masculino. Nesse domínio, a regra é clara: a única seleção capacitada a representar o País é composta por 11 jogadores homens, um treinador homem, auxiliares técnicos homens e dirigentes homens. Se tiverem sorte, as mulheres poderão atuar como nutricionistas ou psicólogas.
Na minha vida profissional, tive pelo menos dez mulheres como superiores diretas. Se para qualquer uma eu respondesse, a cada decisão contrariada, que ela deveria posar na Playboy, ganharia uma bifa na cara, uma carta de demissão e um processo na Justiça. No futebol a relação inexiste porque o esporte quase nunca é pensado para outro público se não o tiozão sentado no sofá, ou na arquibancada, com uma lata de cerveja na mão. Porque é construído e transmitido por tiozões. Basta notar os comentários ao fim dos jogos. Basta reparar nas piadas dos comentaristas ao lado das apresentadoras-alvo-de-piadas. Basta ver o esforço das câmeras para pinçar um decote no meio da torcida (se houver um celular entre o decote, melhor). E basta ver ao fim do jogo as galerias de “belas da torcida”. Ou a galeria de poses insinuantes à beira do campo da nova “musa” do esporte.
Em conversas e rodas informais, costumo dizer que o futebol é um microcosmos da vida comum, e não apenas por assimilar em campo as práticas que consideramos moralmente valiosas, como a generosidade do passe, a doação pelo companheiro contundido, o fôlego extra por um objetivo, a fidelidade dos propósitos e a frieza na hora de tomar uma decisão (o pênalti, nesse sentido, é a situação-limite que todos os cineastas buscam levar à tela). Mas é também um microcosmo do nosso primitivismo. O desembaraço do achincalhe sobre a bandeirinha Fernanda Uliana é o mesmo que permite agredir mulheres nas ruas e culpar a sua saia. Segundo essa concepção, Uliana e as mulheres não entram em campo para trabalhar, mas para aparecer. E as agressões são apenas as reações naturalizadas de uma mesma ousadia – e não de uma incapacidade ancestral de conter o verbo ou a agressão.
Ao fundo da fala do dirigente do Cruzeiro é possível visualizar uma velha cortina: “quem mandou provocar”, “se estivesse em casa não teria acontecido nada disso”. “Se errou, é porque é mulher”. “Se acertou, é apesar de ser mulher”. A galeria de poses sensuais de Fernanda em seu ambiente de trabalho (só para lembrar: os juízes também usam shorts e deixam parte das coxas à mostra) é o combustível aditivado para a construção desse discurso.
E é com base nesse discurso que, em nome honra (hombridade?) da sua torcida e de seu país, o futebol trancafia durante dias os marmanjos para se preparar para as partidas decisivas. Na concentração é proibido chegar perto de mulher. E é proibido receber ou promover visitas íntimas. Maldita maçã envenenada esta de Eva. Não só expulsou os donos das costelas do paraíso como quer envenenar o último bastião de sua pureza, essa grande confraria masculina chamada futebol.

Lançamento do Livro:

Copa do Mundo na África do Sul – Um legado para quem?


Organizado por Eddie Cottle

Traduzido por Lara Freitas

ISBN: 978-85-7474-752-1 
Páginas: 408 ilustradas 
Peso: 750g 
Ano: 2014

Foto da capa: Estádio do Soccer City, na abertura da Copa 2010 na África do Sul

Capa: Rodrigo Poeta


Uma lição vinda da África do Sul:

Os cartéis da construção estão aumentando significativamente os custos de infraestrutura da Copa do Mundo FIFA 2014 no Brasil? 
Eddie Cottle, Paulo Capela, André Furlan Meirinho

Introdução 
A luta e a organização dos trabalhadores da construção civil e madeira da África do Sul para reivindicar melhores condições de trabalho antes e depois da realização da Copa do Mundo de Futebol de 2010 naquele país tornaram-se referência para as jornadas de lutas e organização dos trabalhadores da construção civil de todo o mundo. 
A exitosa organização dos sindicatos possibilitou inúmeros ganhos aos trabalhadores e também o desenvolvimento de uma metodologia de análise das obras das arenas “padrão” FIFA, capaz de desvelar os valores dos superfaturamentos das indústrias da construção em conluio com empreiteiras. 
Assim, em abril de 2013, os diretores do Instituto de Estudos Latino- Americanos da Universidade Federal de Santa Catarina (IELA-UFSC), têm um primeiro contato com o pesquisador sul-africano Eddie Cottle, convidado para uma das conferências da IX edição das Jornadas Bolivarianas, principal atividade científica anual do Instituto. Eddie é convidado por seu protagonismo durante todo o processo de luta dos trabalhadores sul-africanos que laboraram nas obras da Copa do Mundo FIFA de Futebol de 2010-África do Sul e também por ser organizador, autor e editor do original em língua inglesa: South Africa’s World Cup: a legacy for whom?. Em sua obra, juntamente com outros 12 importantes pesquisadores sul-africanos, ele põe luz sobre inúmeros fatos envolvendo a realização da Copa FIFA de Futebol de 2010. 
Em julho de 2013, Eddie Cottle retorna ao IELA para realizar uma investigação conjunta com pesquisadores e acadêmicos do Instituto sobre o custo das arenas de futebol para a Copa FIFA de Futebol de 2014 no Brasil. Utilizando-se da metodologia empregada por ele na África do Sul, são encontrados números importantes sobre os valores das obras das arenas construídas e reformadas no Brasil. São números que ainda carecem de mais aprofundamentos, mas que já permitem visualizar muitos dos valores que estão sendo gastos a mais para a realização da Copa do Mundo de futebol 2014 no Brasil. 
O relatório preliminar do IELA propunha-se tornar público os primeiros números da operação dos cartéis da construção durante a execução de obras da Copa do Mundo de Futebol FIFA e a primeira atividade da parceria que passaremos a estabelecer com os pesquisadores do continente africano no sentido de potencializar nossas ações de esclarecimento e oferecimento de informações científicas para a ação dos trabalhadores numa perspectiva desde o sul, fugindo assim do determinismo científico eurocêntrico e estadunidense que tem enfraquecido as ações dos pesquisadores universitários brasileiros em vincularem-se organicamente às lutas populares e no mesmo sentido produzido um academicismo estéril às causas nacionais.
Já em 2008 o relatório do Comitê de Concorrência da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) do setor de construção descobriu que, “infelizmente, a indústria da construção foi vítima da atividade de cartel, conforme foi exposto em matérias amplamente divulgadas em todo o mundo”. Na mesa-redonda do OCDE, 19 países da Europa, Ásia, América do Norte, e principalmente, da África do Sul denunciaram amplamente a atividade de cartel. Foi descoberto cartel na indústria do cimento na Turquia e na Alemanha, incluindo fixação de preços e divisão de mercado. 
Na Holanda, as empresas de construção foram consideradas culpadas por manter contas secretas nas quais mantinham valores de fraudes cometidas em 8,8% de todas as obras públicas que executaram. Valores, portanto, produto de conluio. No Japão e no Reino Unido, grandes empresas envolveram-se na manipulação das licitações para construção de pontes, estradas, escolas, hospitais e conjuntos habitacionais, para citar apenas alguns exemplos. 
Nesse encontro do OCDE, a África do Sul apresentou seu relatório sobre os custos excessivos relacionados aos estádios da Copa do Mundo FIFA 2010 que, na época, estavam sob suspeitas de ter licitações fraudulentas. 
Através de práticas de conluio, fraude nas licitações e superfaturamento, as empresas de construção de obras para a Copa FIFA vêm obtendo em todo mundo enormes ganhos financeiros à custa dos trabalhadores e dos contribuintes dos países-sede. O que tem ocorrido com as irregularidades do setor de construção é preocupante pelo fato de que esse setor não é somente vital para todos os aspectos da atividade econômica, mas também porque oferece a infraestrutura necessária para suprir as necessidades básicas das pessoas tais como habitação, escolas, universidades, hospitais e uma série de outras edificações do governo e outras instalações públicas. O setor de construção também constrói estradas, ferrovias, portos, sistemas de esgoto etc. 
Implicitamente, isso significa que as metas de desenvolvimento propostas pelos governos nacionais que sediam a Copa FIFA de Futebol são frustradas em parte pela transferência maciça de riqueza desses Estados para empresas privadas, em detrimento da criação de emprego e redistribuição de renda para a população, inibindo assim os ganhos econômicos a que se destina. É neste contexto que se insurge o descontentamento nacional no Brasil, levando milhares de pessoas, nas principais cidades, a manifestarem sua indignação de forma legítima contra o aumento dos custos de transporte, a má qualidade dos serviços de saúde e de educação, incluindo os custos crescentes da realização da Copa do Mundo da FIFA. 
São as práticas de conluio de empresas de construção que produzem os custos exorbitantes dos estádios da Copa do Mundo e dos projetos de infraestrutura. Na África do Sul, que sediou a Copa do Mundo FIFA 2010, somente o custo dos estádios aumentou em 1.008%. No Brasil, o aumento dos custos dos estádios da Copa do Mundo já está em 327%, segundo as estimativas de 2013, e aumentarão rapidamente conforme os estádios sejam concluídos. No ritmo atual de aumento dos custos, é provável que o Brasil realize a Copa do Mundo FIFA mais cara da história das Copas do Mundo. 
Portanto, esta análise desafia a população e o governo brasileiro a seguirem, imediatamente, o exemplo dado pela Comissão de Concorrência da África do Sul, que investigou as operações do cartel de construção e a forma como atuaram na construção das obras da Copa FIFA, levando finalmente as empresas culpadas a um tribunal que multou as empresas de construção por práticas de concorrência desleais, estando as empresas na eminência de também serem consideradas empresas não cooperativas.

Lições dadas pela África do Sul

O aumento de custos da Copa do Mundo FIFA 2010 na África do Sul foi significativo e inicialmente atribuído à vulnerabilidade dos países por conta da crise econômica mundial 2008-2009. O ex-ministro da Fazenda sul-africano, Trevor Manuel, afirmou, em outubro de 2008, que as obras da construção da Copa do Mundo seriam afetadas porque “os custos de construção são uma grande ameaça para o que queremos fazer”. No entanto, ele não observou que em outubro de 2007 a Comissão de Concorrência da África do Sul montou uma equipe para rever os materiais de construção e o setor de serviços. 
A estimativa do custo inicial foi calculada em 2,3 bilhões de rands (moeda sul-africana) – o equivalente a 519 milhões, em reais – e seria pago pelo governo sul-africano, em grande parte para financiar os estádios e a infra-estrutura. Entretanto, o custo total estimado de 2010 (e é provável que seja ainda muito maior) para o governo da África do Sul era de 39,3 bilhões de rands (8,9 bilhões, em reais) – um aumento absurdo de 1.709% sobre a estimativa inicial. Os custos dos estádios aumentaram da estimativa inicial de 1,5 bilhões de rands (338 milhões, em reais) para a última estimativa de custos em mais de 17,4 milhões de rands (3,9 bilhões, em reais), representando um aumento de 1.008%. 
Cinco grandes empresas de construção civil na África do Sul: Aveng, Murray & Roberts, Group Five, Wilson Bayly Holmes-Ovcon (WBHO) e Basil Read foram as principais empreiteiras na construção dos estádios para a Copa do Mundo FIFA 2010 e vários projetos de infraestrutura nos quais elas obtiveram lucros substanciais. Em 2007, todas estavam sob investigação da Comissão de Concorrência da África do Sul por suspeita de conluio e práticas anticompetitivas em relação a esses projetos. 
Infelizmente, a comissão não investigou as ações de empresas internacionais tais como a alemã HBM Stadien-und Sportstättenbau GmbH, empresa especializada na construção de estádios, a GMP Architekten and Hi-ghtex engineers; a italiana Cimolai; a francesa Bouygues e a holandesa BAM International, envolvidas na construção dos estádios e que tiveram grandes aumentos dos custos de construção. 
Em 17 de julho de 2013, no tribunal da Comissão da Concorrência da África do Sul foram estimados de forma moderada em cerca de 4,7 bilhões Derands(1 bilhão, em reais) os “lucros indevidos” obtidos por empresas de construção nos preparativos para a Copa do Mundo 2010 e em outros projetos. Elas foram multadas, consequentemente, em um total de 1,5 bilhões de rands(338 milhões, em reais). As empresas de construção que não concordaram com a resolução, tais como a Group 5, a Construction ID e a Power Construction, agora enfrentam um possível processo.

O setor da construção brasileiro

De acordo com o Portal 2014 brasileiro (www.portal2014.org.br/andamento-obras) as empresas de construção contratadas para a Copa do Mundo e infraestrutura relacionada são: Odebrecht, Andrade Gutierrez, Galvão Engenharia, OAS Empreendimentos, Mendes Júnior, Via Engineering, Andrade Mendonça, Construcap, Egesa, Hap e Engevix. As duas maiores empresas de construção brasileiras envolvidas na Copa do Mundo são a Andrade Gutierrez e a Odebrecht. 
Conforme a Copa do Mundo e as Olimpíadas se aproximam, o setor de construção brasileiro está prestes a sair de sua inesperada queda de faturamento, o que pode ser vista pelo seu fraco desempenho, atingindo um crescimento de apenas 4,2% em 2011 e de 2,2% em 2012. Esse resultado está relacionado ao fato de que em maio de 2012 somente 25% dos projetos de transporte para a Copa haviam completado o processo de licitação; e no final do mesmo mês, 41% das obras para a Copa do Mundo ainda não haviam sido iniciadas. O setor de construção tem que concluir a construção de 13 aeroportos, 7 portos e 37 projetos de transporte, e ainda construir ou reformar 12 estádios para a Copa do Mundo de 2014. Este setor emprega 2,5 milhões de trabalhadores formais e as estimativas mostram que existem 1,5 milhões de trabalhadores informais. O atraso contribui para o aumento da taxa de desemprego no Brasil que foi de 5,60% em fevereiro de 2013. Muitas das empresas envolvidas nos gastos com a infraestrutura da Copa do Mundo no Brasil são sociedades fechadas e, portanto, as informações financeiras das empresas não estão prontamente disponíveis. No momento da composição deste texto a maioria das empresas ainda não havia divulgado seus Relatórios Anuais de 2013, que poderiam oferecer uma perspectiva diferente ao que está sendo apresentado aqui, pois a posição financeira provavelmente melhorou conforme indicado anteriormente. 
O que ficou claro é que parece que o setor está passando por flutuações drásticas em seus lucros líquidos anuais. A Engevix, por exemplo, divulgou -85% em 2010, porém apontou um aumento de 256% em 2011. Empresas tais como a OAS Empreendimentos, que tinha um lucro líquido de 2.244% em 2010, teve uma diminuição de 360% em 2011. A Andrade Gutierrez divulgou um aumento de lucro líquido de 23% em 2010 e de 28% em 2011. Já a Odebrecht divulgou um aumento de 148% em seu lucro líquido em 2010, o maior lucro de sua história. As empresas não envolvidas nos projetos de construção da Copa do Mundo são a Santa Barbara Consortium Construction, da Arena Pantanal, que foi à falência, e a Delta Construction, que participou da construção do estádio do Maracanã, porém um Comitê do Congresso descobriu que ela estava envolvida em subornos feitos a políticos e outros agentes públicos.

Gastos excessivos dos estádios brasileiros

Construtoras brasileiras e estrangeiras, tais como o escritório de arquitetura alemão GMP, são os principais beneficiários dos gastos com a Copa do Mundo FIFA 2014 e com a infraestrutura relacionada à Copa, que está atualmente calculada em U$ 18 bilhões, sendo 78% dos gastos totais provenientes de financiamento público. 
De acordo com o ministro dos Esportes do Brasil, o impacto geral econômico superará U$ 100 bilhões, criando 332.000 empregos permanentes (2009-2014) e 381.000 empregos temporários em 2014. 
O fato de que até maio de 2012 apenas 41% das obras para a Copa do Mundo ainda não tivessem começado levou o Governo Federal a mudar seus procedimentos para a aprovação de projetos com um “estatuto de excepcionalidade”, criado para aumentar a velocidade de aprovações para projetos de infraestrutura da Copa do Mundo 2014. Consequentemente, as empresas de construção usarão de forma oportuna essa situação a seu favor para fixar os custos das licitações oficiais acima do seu valor, resultando em gastos excessivos que terão de ser pagos pelo governo brasileiro com fundos públicos. A Andrade Gutierrez está envolvida na construção do Estádio Nacional Mané Garrincha (Brasília), da Arena Amazonas (Manaus), do Estádio Beira--Rio (Porto Alegre) e do Estádio do Maracanã (Rio de Janeiro). A Odebrecht na construção do Estádio do Maracanã (Rio de Janeiro), do Estádio da Fonte Nova (Salvador), da Arena Pernambuco (Recife) e do Itaquerão (São Paulo). As duas empresas são responsáveis por 7 dos 12 estádios da Copa do Mundo. Embora tenhamos usado fontes confiáveis para obter os custos dos estádios, os números podem variar ou serem inconsistentes. A fonte mais confiável para as estimativas originais de custo de cada um dos estádios está no Brazil 2014 Bid Book. Porém, o Brazil 2014 FIFA World Cup Bid Book não é divulgado publicamente (assim como todos os bid books), não sendo então possível consultar os custos originais para cada estádio. No entanto, é razoável supor que já que o Brazil Bid Book foi enviado à FIFA até 31 de julho de 2007 e que a Equipe de Inspeção da FIFA realizou a visita de inspeção em 23 de agosto de 2007, o valor constante neste relatório de U$ 1,1 bilhões para todos os estádios reflete os números originais do Bid Book.

Rumo a uma investigação sobre cartel no setor de construção

Em agosto de 2013, o Congresso Brasileiro propôs a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar os gastos excessivos com os estádios e as alegações de corrupção. O pedido de investigação veio do “senador Álvaro Dias, do principal partido de oposição, o PSDB, que inicialmente solicitou a investigação” como resposta às exigências dos manifestantes brasileiros nas ruas. Acreditamos que há motivos suficientes para o governo brasileiro abrir uma investigação completa sobre as operações de um cartel de construção; o Relatório do Comitê de Concorrência da OCDE, a evidência irrefutável do Relatório da Comissão de Concorrência da África do Sul, especialmente em relação à Copa do Mundo FIFA 2010, e os aumentos abusivos de custos dos estádios do Brasil quando comparados com o Relatório da Equipe de Inspeção da FIFA de 2007. Ainda mais uma motivação para a necessidade de tal investigação é a recente decisão por parte do estado de São Paulo de “abrir um processo contra a Siemens AG (SI) para tentar recuperar o dinheiro que a empresa supostamente superfaturou do Estado pelos trens vendidos por um consórcio para a cidade e redes de transporte regionais”. Neste último caso, deverão demonstrar a necessidade de garantir que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), envolvido na investigação da Siemens, estenda sua investigação ao setor de construção. Tal investigação sobre os negócios do cartel de construção não deve se limitar às empresas brasileiras, mas deve, também, se estender às empresas internacionais envolvidas em atividades de construção civil relacionadas. 
Por fim, é necessário que o governo brasileiro responda aos apelos da sociedade civil por mais transparência na prestação de contas e nos assuntos relacionados à Copa do Mundo FIFA 2014 e que divulgue publicamente o Bid Book brasileiro oficial.

Sumário

Introdução 
Eddie Cottle 
1 FIFA e o complexo desportivo de acumulação 
Dale T. McKinley 
2 Promessas econômicas e armadilhas da Copa do Mundo da África do Sul 
Patrick Bond e Eddie Cottle 
3 O caneco deles transbordou – Empresas de construção e a Copa do Mundo da FIFA de 2010 
Michelle Taal 
4 Chutando no próprio gol? – A greve dos operários da Copa do Mundo de 2010 
Eddie Cottle 
5 O legado dos sindicatos da Copa do Mundo 2010 – a solidariedade internacional revitalizada 
Vasco Pedrina e Joachim Merz 
6 Comércio informal e a batalha pelos negócios 
Pat Horn 
7 Mentiras, deturpação e expectativas não alcançadas – Exploração sexual e a Copa do Mundo de Futebol de 2010 
Vivienne Mentor-Lalu 
8 O greenwashing da FIFA – A Copa do Mundo e o Aquecimento Global 
Trsiten Taylor 
9 Soccer City – Quem bebeu toda a cerveja da cabaça? 
Mondli Hlatshwayo 
10 Green Point Stadium – O Legado FIFA do jogo desleal 
Mondli Hlatshwayo e Michael Blake 
11 Contando vantagem – Dissecação da lenda urbana do legado de desenvolvimento do Moses Mabhida Stadium de Durban 
Aisha Bahadur 
12 Mbombela – Corrupção, assassinato, falsas promessas e resistência 
Dale T. McKinley (com o African Eye News Service) 
13 Construindo Coliseus, vivendo em barracos – Operários na sombra da cidade mundial 
Tony Roshan Samara 
Colaboradores

Apresentação

Paulo Capela 
Elaine Tavares 
Diretores do IELA

Após a leitura desse livro não será mais possível alegar ignorância sobre os fatos e os interesses econômicos que envolvem os bastidores dos megaeventos esportivos, caracterizados por serem um grande negócio e peça da maquinaria que produz a modernização conservadora e o subdesenvolvi-mento nas nações periféricas do planeta. A tradução para a língua portuguesa do livro – South Africa’s World Cup: a legacy for whom? – viabilizada pelo IELA – Instituto de Estudos Latino-Americanos desde um de seus núcleos de pesquisa, o Vitral Latino-Americano de Educação Física, Esportes e Saúde da UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina, inaugura a parceria do nosso Instituto com nobres e qualificados pesquisadores, ativistas culturais, líderes políticos partidários, sindicalistas e intelectuais pesquisadores do continente africano, rompendo assim com a arrogância e o determinismo do pensamento único eurocêntrico e estadunidense que coloniza a América Latina por séculos. Já há inúmeros fatos que evidenciam atos de corrupção no Brasil semelhantes aos que têm sido historicamente praticados em outros países do mundo e que os autores dessa obra explicitaram de forma magistral, desvelando aos leitores as estratégias utilizadas e as nefastas consequências produzidas pela “forma negócio” do futebol, praticada pela FIFA, e que tanto mal produziu na vida do povo africano durante a realização da Copa FIFA/ 2010 naquele continente. 
Mais do que desvelar, anunciar, resistir, denunciar, essa obra estimula a organização popular daqui e de lá para exigir reparação pelas injustiças cometidas e punição aos inimigos do povo. Entendemos que obras como essa que agora vem a lume ajuda, sobremaneira, a provocar o debate com os povos de todo o planeta e orienta outros horizontes para a efetivação das práticas corporais olímpicas e para a promoção da unidade planetária através do futebol, principal prática esportiva da civilização contemporânea. 
Pensamos ser fundamental a união em escala mundial para afirmar que já existe acúmulo científico suficiente para produzir encontros esportivos, inclusive os de futebol, entre os povos do mundo. Mas, as propostas que deveriam permear esses eventos teriam de ter o compromisso de preservar a saúde dos atletas, a vida e as identidades nacionais populares dos povos. Assim, poderiam servir efetivamente de exemplo a tantos meninos e meninas que, nessas ocasiões, se espelham nos atletas. Daí a necessidade de serem práticas pautadas na vida, na cooperação, na fraternidade e na paz entre os povos. Mas, não é isso o que se vê. 
Queremos que, através da parceria afro-brasileira, iniciada durante a IX edição das Jornadas Bolivarianas, realizada em abril de 2013 na UFSC, principal evento científico do IELA, cresça um clamor latino-americano e planetário articulando os grupos críticos em um movimento pela extinção dessa forma de promover a integração das populações mundiais via esportes-mercadoria, sob o domínio e coordenação da FIFA, do COI e de suas afiliadas em territórios nacionais de todos os países. Assim, poderia ser gerada uma teia de agências interligadas para replicar os interesses antipopulares transnacionais em territórios nacionais que seguem produzindo práticas e gostos pelos esportes e lazer capitalista, antivida e promotoras do subdesenvolvimento econômico das nações. ,br. Desta forma, brindamos a efetivação de mais um trabalho do Instituto de Estudos Latino-Americanos capaz de favorecer a compreensão das práticas capitalistas necrófilas em seus variados campos da cultura humana, que, no caso em tela, debruça-se sobre a forma de apropriação capitalista do futebol, tornando-o um grande negócio a serviço de poucos. 
As energias que alimentam nossas ações e publicações emanam de todos os amigos da vida, de todos os que atuam em prol do desenvolvimento de toda a vida planetária, cujo êxito só será atingido com muita coragem, luta, cooperação e amor, na ação conjunta de superação do capitalismo. 
Agradecemos, então, a todos os que com seu trabalho contribuíram para a efetivação desse livro, publicado pelo IELA/Vitral em parceria com a Editora Insular, em especial aos colegas sul-africanos, valorosos lutadores populares, escritores e pesquisadores orgânicos das lutas dos povos. E, de forma especial, nosso agradecimento a Eddie Cottle por organizar originalmente essa obra e a sua editora africana por nos ceder os direitos de tradução para a língua portuguesa, disso que é, enfim, o resultado da luta dos trabalhadores.

Prefácio à edição sul-africana

Crecentia Mofokeng 
Representante Regional da Building and Wood 
Workers’ International(BWI), África e Oriente Médio

Este livro é o resultado de três anos de empenho, colaboração, pesquisa e luta para melhorar as condições dos operários antes, durante e após a Copa do Mundo da Federação Internacional de Futebol Associado (FIFA - Fédération Internationale de Football Association) 2010. O que começou como uma tentativa de documentar as batalhas dos operários da construção transformou-se em um projeto muito maior quando ficou evidente que o desenvolvimento de um megaprojeto através do esporte é algo muito mais complexo. Em 2006 a Building and Wood Workers’ International(BWI) (Organização Internacional dos Trabalhadores da Construção Civil e Madeira) formou uma parceria com o Labour Research Service(LRS) (Serviço de Pesquisa do Trabalho) para dar suporte à campanha “Trabalho Decente para e muito além de 2010”, usando a oportunidade da Copa do Mundo de 2010 para promover condições de trabalho decente no setor de construção na África do Sul. 
Depois que a LRS analisou o impacto de megaeventos de esporte nas condições dos operários, várias novas ideias e perspectivas surgiram. A pesquisa inicialmente pretendia informar a reação dos operários e dos sindicatos na batalha para melhorar as condições dos trabalhadores, mas logo ficou claro que isso não seria possível sem que víssemos o espetáculo esportivo como um todo e o papel da FIFA na globalização do capitalismo e na acumulação. Além disso, o Global Wage Report da International Labour Organization (ILO) (Relatório sobre Salários da Organização Internacional do Trabalho Global) mostra que a participação dos operários na riqueza caiu significativamente sob a globalização neoliberal e que a desigualdade mundial aumentou. A pergunta que buscamos responder é a Copa do Mundo de 2010 produziria algo diferente além do que estava sendo suposto por seus organizadores, pelo governo da África do Sul, pelos organizadores municipais e pela mídia? Em outras palavras, os benefícios prometidos sobre o evento alcançam os sul-africanos comuns e os trabalhadores em especial? 
Havia pouca informação disponível sobre o que realmente acontece com os operários, além das promessas e reivindicações generalizadas sobre o legado duradouro do evento, pois a maioria dos estudos (até mesmo as colaborações mais importantes) é meramente focada nos legados de infra-estrutura econômica e urbana. Além disso, observando que a FIFA estava vinculada ao capital transnacional e que a Copa do Mundo era a sua raison d’être, a alegação da FIFA de que ela era uma organização beneficente teve de ser questionada, pois ela sempre relutava em se envolver nas questões que confrontavam os trabalhadores, argumentando que a FIFA não era o empregador. Sem contar que a organização exige milhares de concessões e garantias dos governos, capta e controla o comércio através dos direitos de propriedade intelectual e várias outras disposições. 
Este livro oferece uma análise geral e crítica do impacto de megaeventos esportivos, tais como a Copa do Mundo da FIFA, e o paradigma desenvolvimentista associado a ele. Também desafia todos os estudos já conhecidos e aqueles que idolatram a FIFA ao fornecer análises rigorosas e evidências concretas sobre o que era na verdade um evento esportivo espetacular destinado à acumulação maciça e à extração de riqueza da África do Sul, e contradiz as promessas de desenvolvimento e supostas perspectivas futuras para o crescimento econômico compartilhado. 
De várias formas este livro relança um debate necessário sobre os paradigmas do desenvolvimento que tem sido dominado e engolido pela hegemonia da ideologia neoliberal. É uma intervenção oportuna no desenvolvimento e no ressurgimento de um discurso esquerdista sobre o impacto de megaeventos esportivos, que se tornaram parte do ciclo “natural” de quatro anos neste período de globalização capitalista e o qual trouxe mais mudanças de desigualdade para a economia mundial, seus cidadãos e o meio ambiente. Esperamos que as lições aprendidas na África do Sul possam ser compartilhadas com os trabalhadores envolvidos nas preparações do Campeonato Europeu de Futebol da União das Federações Europeias de Futebol (UEFA – Union of European Football Associations) na Ucrânia e na Polônia em 2012 e a Copa do Mundo no Brasil em 2014, entre outros megaeventos programados para o futuro próximo.

Organizadores

Eddie Cottle – organizador deste livro, é representante oficial de campanhas e políticas da Building and Wood Workers'International (BWI).

Paulo Capela – professor do Centro de Desportos da Universidade Federal de Santa Catarina, atual Coordenador do Vitral Latino-Americano de Educação Física, Esportes e Saúde e ex-presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos, ambos da UFSC.

André Furlan Meirinho – MBA em Desenvolvimento Regional Sustentável pela UNB, mestrando em Planejamento e Desenvolvimento Territorial Sócio-Ambiental na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).

sexta-feira, 9 de maio de 2014

POR UMA CAPOEIRA SEM SENHORES

Convidados de audiência reagem a projeto que reconhece capoeira como profissãoEnviar notícia por e-mailImprimir

Gorette Brandão
Audiência pública realizada pela Comissão de Educação, Cultura e Esporte (CE), nesta quarta-feira (7), revelou divergências em relação a projeto de lei destinado a reconhecer a prática da capoeira como profissão. Para a maioria dos convidados, a proposta em exame (PLC 31/2009), vinda da Câmara dos Deputados, reduz uma prática cultural complexa a um esporte, além de impor um modelo de organização federativa sem garantia de transparência, que poderá trazer a exclusão de mestres formados dentro da tradição e que conquistam o título por reconhecimento dos próprios praticantes.
A visão predominante é de que regulamentação só será legítima se reconhecer a capoeira como atividade multidimensional - ao mesmo tempo luta, dança e arte - além de fator de socialização, criação de identidade e de transmissão de memória ancestral.
Para Alexandro Reis, diretor da Fundação Cultural Palmares, no momento em que o país vem adotando ações afirmativas no campo da educação e em favor dos quilombolas, esse deve ser o enfoque para a capoeira, cabendo aos praticantes construir uma ação unitária e provocar o Estado a agir na direção certa.
– O Estado tem uma dívida com os capoeiristas e com a cultura afrobrasileira – afirmou.
O debate foi sugerido pelos senadores Inácio Arruda (PCdoB-CE) e Lídice da Mata (PSB-BA). A senadora, que também presidiu a audiência, é a relatora do projeto, do deputado Arnaldo Faria de Sá (PSDB-SP), na Comissão de Educação. O projeto reconhece a prática da capoeira como profissão, na sua manifestação como dança, competição ou luta, considerando o capoeirista um atleta profissional.
Escolha
Reginaldo da Silveira Costa, mestre de capoeira (batizado Squisito) e educador, defendeu como alternativa um modelo de organização que não afete o “princípio da liberdade de escolha”. Prevalecendo o sistema sugerido pelo projeto, conforme assinalou, todos os mestres deverão ser filiados e homologados por um conselho, a seu ver um critério que “arrepia” o capoeirista e suas tradições.
- Lutamos séculos contra a hegemonia de qualquer tipo de senhor, de qualquer tipo de dominação, para chegar a um tempo em que a gente cria uma lei que nos engessará perante a uma determinada instituição. Essa é a questão mais assustadora - disse.
Representante do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a diretora Célia Maria Corsino explicou que, com o reconhecimento da capoeira como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, em julho de 2008, a roda de capoeira e o ofício de mestre foram inscritos no Registro dos Ofícios e Mestres de Saberes. Mesmo com a ressalva de que não é papel do órgão apoiar ou não o projeto, ela afirmou que a profissão a ser criada de fato não pode desconsiderar a complexa dimensão cultural e social da capoeira.
Dentro das responsabilidades do órgão de incentivar e proteger os bens culturais reconhecidos, no caso da capoeira o Iphan deve lançar ainda esse ano um edital de premiação para os mestres de capoeira, como informou a diretora. O órgão também participa de comitê que está trabalhando para assegurar o reconhecimento da roda de capoeira, pela Unesco, como bem imaterial da humanidade. Além disso, ela disse que, por meio de suas representações estaduais, o Iphan está identificando e buscando o diálogo com grupos de capoeira de todo o país, saindo do foco “Bahia-Rio de Janeiro”.
- A gente pensa que não, mas a capoeira está em todo o Brasil – afirmou.
Mesmo sem fazer clara defesa do projeto, o presidente da Confederação Brasileira de Capoeira (CBC), Gersonildo Heleno de Sousa, foi o único na mesa a enfatizar como urgente a institucionalização da profissão. Como explicou, isso irá solucionar o problema da proteção previdenciária, além de fortalecer os campeonatos e a criação de ranking nacional de capoeiristas, um critério para a concessão da bolsa-esporte aos atletas.
- Nossa ideia é também buscar a profissionalização para afastar os falsos mestres [de capoeira]. Hoje parece que todo mundo é mestre – comentou Gersonildo.
Já Hélio Tabosa de Moraes, o mestre Tabosa, disse que não se preocupa com a questão dos “falsos mestres”. Segundo ele, o reconhecimento vem da comunidade e, se ele não existir, o pretenso mestre “não vai longe”. Para ele, há motivos mais sérios para que se fique com um “pé atrás”, posição de defesa na ginga da capoeira. O principal seria em relação a como se fará a destinação dos recursos que o projeto destina à atividade, o equivalente a 2% da arrecadação das loterias, que tendem a ser atribuídos à atual federação.
- Esta instituição passa a ser a única a ter direito ao acesso a esses recursos e isso praticamente diz quais são os objetivos que o projeto em si busca e que são lesivos aos interesses maiores da capoeira, da cultura e da sociedade – afirmou.
Sem pressa
Depois da longa discussão, Lídice da Mata esclareceu que, diante das controvérsias, ela não terá pressa em apresentar o relatório com sua posição sobre o projeto. Disse que o assunto é complexo e precisa ser bem amadurecido. Observou que isso é ainda mais importante porque, devidos a restrições constitucionais, o Supremo Tribunal Federal tem sido rigoroso no tratamento de ações a respeito de profissões. Por esse motivo, ressaltou Lídice, os mais recentes projetos para regulamentar atividades estão sendo vetados quando chegam para sanção presidencial.
- Por isso tudo é necessário caminhar devagar.  Além disso, toda regulamentação significa restrição ao exercício da atividade – disse a senadora, ao reconhecer também esse ponto como mais um motivo de cautela.
Lídice, que recentemente esteve em Salvador para uma audiência da comissão sobre a matéria, observou ainda a necessidade de ouvir grupos e praticantes de capoeira de todo o país. Observou que há restrições orçamentárias para que se faça uma audiência em cada estado, mas lembrou que as contribuições podem ser enviadas pelos canais interativos do Senado pelo portal na internet. Também adiantou que deverá aproveitar o trabalho de consulta que o Iphan está promovendo.
A senadora, numa exceção às regras, deu voz a um conjunto de ouvintes da audiência, entre eles Zulu Araújo, ex-presidente da Fundação Palmares. Ele destacou que o projeto não é a primeira ameaça à tradição cultural da capoeira. Lembrou que há alguns anos o Conselho Federal de Educação Física instruiu suas regionais a exigirem diploma de curso superior para quem ensinasse capoeira, além de cobrar contribuição ao órgão.
Para afastar o risco, naquele momento o então ministro da Cultura Gilberto Gil formou um grupo de trabalho, do qual fez parte. Como resultado desse trabalho, depois se encaminhou ao Iphan o pedido para que a capoeira fosse reconhecida como patrimônio cultural imaterial.

E você? O que acha? A Copa já era!??

A copa já era!

Jorge Luiz Souto Maior
O presente texto tem o propósito de apresentar onze argumentos, do goleiro ao ponta-esquerda, para demonstrar que a Copa já era! Ou seja, que já não terá nenhum valor para a sociedade brasileira e, em especial para a classe trabalhadora, restando-nos ser diligentes para que os danos gerados não se arrastem para o período posterior à Copa.

1. A perda do sentido humano

O debate entre os que defendem a causa “não vai ter copa” e os que afirmam “vai ter copa” está superado. Afinal, haja o que houver, o evento não vai acontecer, ao menos no sentido originariamente imaginado, como instrumento apto a gerar lucros e dividendos políticos “limpinhos”, como se costuma dizer, pois não é mais possível apagar os efeitos deletérios que a Copa já produziu para a classe trabalhadora brasileira. É certo, por exemplo, que para José Afonso de Oliveira Rodrigues, Raimundo Nonato Lima Costa, Fábio Luiz Pereira, Ronaldo Oliveira dos Santos, Marcleudo de Melo Ferreira, José Antônio do Nascimento, Antônio José Pitta Martins e Fabio Hamilton da Cruz, mortos nas obras dos estádios, já não vai ter Copa!
Aliás, a Copa já não tem o menor valor para mais de 8.350 famílias que foram removidas de suas casas no Rio de Janeiro, em procedimento que, como adverte o jornalista Juca Kfouri, no documentário, A Caminho da Copa1, de Carolina Caffé e Florence Rodrigues, “lembram práticas nazistas de casas que são marcadas num dia para serem demolidas no dia seguinte, gente passando com tratores por cima das casas”. Essas práticas, segundo relatos dos moradores, expressos no mesmo documentário, incluíram invasões nas residências, para medir, pichar e tirar fotos, estabelecendo uma lógica de pressão a fim de que moradores assinassem laudos que atestavam que a casa estava em área de risco, sob o argumento de que na ausência de assinatura nada receberiam de indenização, o que foi completado com o uso da Polícia para reprimir, com extrema violência, os atos de resistência legítima organizados pelos moradores, colimando com demolições que se realizaram, inclusive, com pessoas ainda dentro das casas. As imagens do documentário mencionado são de fazer chorar e de causar indignação, revolta e repúdio, como o são também as imagens da violência utilizada para a desocupação de imóvel da VIVO na zona norte do Rio de Janeiro, ocorrida no dia 11 de abril de 2014, onde se encontravam 5.000 pessoas. Lembre-se que as remoções para a Copa ocorreram também em Cuiabá, Curitiba, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Manaus, São Paulo e Fortaleza, atingindo, segundo os Comitês Populares da Copa, cerca de 170 mil famílias em todo o Brasil.
A Copa já não tem sentido para o Brasil, como nação, visto que embora sejam gastos cerca de R$ 30 bilhões para o montante total das obras, sendo 85% vindos dos cofres públicos, a forma como se organizou – ou não se organizou – a Copa acabou abalando a própria imagem do Brasil. Ou seja, mesmo se pensarmos o evento do ponto de vista econômico e ainda que, imediatamente, se possa chegar a algum resultado financeiro positivo, considerando o que se gastou e o dinheiro que venha a ser atraído para o mercado nacional, é fácil projetar um balanço negativo em razão da quebra de confiabilidade.
Se o Brasil queria se mostrar, como de fato não é, para mais de 2 bilhões de telespectadores, pode estar certo de que a estratégia já não deu certo. A propósito, a própria FIFA, a quem se concederam benefícios inéditos na história das Copas, tem difundido pelo mundo uma imagem extremamente negativa do Brasil, que até sequer corresponde à nossa realidade2, pois faz parecer que o Brasil é uma terra de gente preguiçosa e descomprometida, quando se sabe que o Brasil, de fato, é um país composto por uma classe trabalhadora extremamente sofrida e dedicada3 e onde se produz uma inteligência extremamente relevante em todos os campos do conhecimento, mas que, enfim, serve para demonstrar que maquiar os nossos problemas sociais e econômicos não terá sido uma boa estratégia.

2. Ausência de beneficio econômico

Mesmo que entre perdas e ganhos o saldo econômico seja positivo, há de se indagar qual o preço pago pela população brasileira, vez que restará a esta conviver por muitos anos com o verdadeiro legado da Copa: alguns estádios fantasmas e obras inacabadas, nos próprios estádios e em aeroportos e avenidas, além da indignação de saber que os grandes estádios e as obras em aeroportos custaram milhões aos cofres públicos, mas que, de fato, pouca serventia terão para a maior parte da classe operária, que raramente viaja de avião e que tem sido afastada das partidas de futebol, em razão do processo notório de elitização incrementado neste esporte.
Oportuno frisar que o dinheiro público utilizado origina-se da riqueza produzida pela classe trabalhadora, vez que toda riqueza provém do trabalho e ainda que se diga que não houve uma transferência do dinheiro público para o implemento de uma atividade privada, vez que tudo está na base de empréstimos, não se pode deixar de reconhecer que foram empréstimos com prazos e juros bastante generosos, baseados na previsibilidade de ganhos paralelos com o evento, ganhos que, no entanto, já se demonstram bastante questionáveis.
No caso do estádio Mané Garrincha, em Brasília, por exemplo, com custo final estimado em R$1,9 bilhões, levando-se em consideração o resultado operacional com jogos e eventos obtidos em um ano após a conclusão da obra, qual seja, R$1.137 milhões, serão precisos 1.167 anos para recuperar o que se gastou, o que é um absurdo do tamanho do estádio, ainda que o Ministro do Esporte, Aldo Rebelo, e o secretário executivo da pasta, Luis Fernandes, tenham considerado o resultado, respectivamente, “um êxito” e “um exemplo contra o derrotismo”4.
O problema aumenta, gerando indignação, quando se lembra que não se tem visto historicamente no Brasil – desde sempre – a mesma disposição de investir dinheiro público em valores ligados aos direitos sociais, tais como educação pública, saúde pública, moradias, creches e transporte.
O que se sabe com certeza é que a FIFA, que não precisa se preocupar com nenhum efeito social e econômico correlato da Copa, obterá um enorme lucro com o evento. “Uma projeção feita pela BDO, empresa de auditoria e consultoria especializada em análises econômicas, financeiras e mercadológicas, aponta que a Copa do Mundo de 2014 no Brasil vai render para a Fifa a maior arrecadação de sua história: nada menos do que US$ 5 bilhões entrarão nos cofres da entidade (cerca de R$ 10 bilhões).”5

3. O prejuízo para o governo

O governo brasileiro, que tenta administrar todos os prejuízos do evento, vê-se obrigado, pelo compromisso assumido por ocasião da candidatura, a conferir para a FIFA garantias, que ferem a Constituição Federal e que, por consequência, estabelecem um autêntico Estado de exceção, para que o lucro almejado pela FIFA não corra risco de diminuição, entregando-lhe, além dos estádios, que a FIFA utilizará gratuitamente:
a) a criação de um “local oficial de competição”, que abrange o perímetro de 2 km em volta do estádio, no qual será reservada à FIFA e seus parceiros, a comercialização exclusiva, com proibição do livre comércio, inclusive de estabelecimentos já existentes no tal, caso seu comércio se relacione de alguma forma ao evento;
b) a institucionalização do trabalho voluntário, para serviços ligados a atividade econômica (estima-se que cerca de 33 mil pessoas terão seu trabalho explorado gratuitamente, sem as condições determinadas por lei, durante o período da Copa no Brasil);
c) o permissivo, conferido pela Recomendação n. 3/2013, do CNJ, da exploração do trabalho infantil, em atividades ligadas aos jogos, incluindo a de gandula, o que foi proibido, ainda que com bastante atraso, em torneios organizados pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol), desde 2004, seguindo a previsão constitucional e o Estatuto da Criança e da Juventude (ECA); d) a liberdade de atuar no mercado, sem qualquer intervenção do Estado, podendo a FIFA fixar o preço dos ingressos como bem lhe aprouver (art. 25, Lei Geral da Copa);
e) a eliminação do direito à meia-entrada, pois a Lei Geral da Copa permitiu à FIFA escalonar preços em 4 categorias, que serão diferenciadas, por certo, em razão do local no estádio, sendo fixada a obrigatoriedade de que se tenha na categoria 4, a mais barata (não necessariamente com preço 50% menor que a mais cara), apenas 300 mil ingressos, sem quórum mínimo para cada jogo, e apenas dentre estes é que se garantiu a meia entrada para estudantes, pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos; e participantes de programa federal de transferência de renda, que, assim, foram colocados em concorrência pelos referidos ingressos;
f) o afastamento da aplicação do Código de Defesa do Consumidor, deixando-se os critérios para cancelamento, devolução e reembolso de ingressos, assim como para alocação, realocação, marcação, remarcação e cancelamento de assentos nos locais dos Eventos à definição exclusiva da FIFA, a qual poderá inclusive dispor sobre a possibilidade: de modificar datas, horários ou locais dos eventos, desde que seja concedido o direito ao reembolso do valor do ingresso ou o direito de comparecer ao evento remarcado; da venda de ingresso de forma avulsa, da venda em conjunto com pacotes turísticos ou de hospitalidade; e de estabelecimento de cláusula penal no caso de desistência da aquisição do ingresso após a confirmação de que o pedido de ingresso foi aceito ou após o pagamento do valor do ingresso, independentemente da forma ou do local da submissão do pedido ou da aquisição do Ingresso (art. 27).

4. O prejuízo para a cidadania

Para garantir mesmo que o lucro da FIFA não seja abalado, o Estado já anunciou que o evento terá o maior efetivo de policiais da história das Copas, com gasto estimado de 2 bilhões de reais, mobilizando, inclusive, as Forças Armadas, tudo isso não precisamente para proteger o cidadão contra atos de violência urbana, mas para impedir que o cidadão, vítima da violência da Copa, possa se insurgir, democraticamente, contra a sua realização.
A respeito das manifestações, vale frisar, é completamente impróprio o argumento de que como nada se falou antes, agora é tarde para os cidadãos se insurgirem. Primeiro, porque quando o compromisso foi firmado ninguém foi consultado quanto ao seu conteúdo. E, segundo, porque nenhum silêncio do povo pode ser utilizado como fundamento para justificar o abalo das instituições do Estado de Direito, vez que assim toda tirania, baseada na força e no medo, estaria legitimada. O argumento, portanto, é insustentável e muito grave, sobretudo no ano em que a sociedade brasileira se vê diante do desafio de saber toda a verdade sobre o golpe de 1964 e os 21 anos da ditatura civil-militar.
Deve-se acrescentar, com bastante relevo, que o evento festivo, composto por alguns jogos de futebol, está sendo organizado de modo a abranger toda a sociedade brasileira, impondo-lhe os mais variados sacrifícios, pois impõe uma intensa alteração da própria rotina social, atingindo a pessoas que nenhuma relação possuem com o evento ou mesmo que tenham aversão a ele.
O próprio calendário escolar foi alterado, para que não houvesse mais aulas durante a Copa, buscando, de fato, melhorar artificialmente o trânsito e facilitar o acesso aos locais dos jogos. A educação, que é preceito fundamental, que se arranje, pois, afinal, é ano da Copa! Algumas cidades, para melhor atingir esse objetivo da facilitar a circulação, mascarando os problemas do transporte, pensam, seriamente, em decretar feriados nos dias de jogo da seleção brasileira, interferindo, também, na lógica produtiva nacional.
Nos serviços públicos já se anunciaram alterações nos horários de funcionamento, de modo a não permitir coincidência com os dias de jogos do Brasil, sendo que em alguns Tribunais do Trabalho (Mato Grosso – em Cuiabá e nas cidades do interior; Rio Grande do Sul e São Paulo, com diferenças de intensidade e de datas); o funcionamento foi suspenso, gerando adiamento das audiências... Ou seja, o trabalhador, que esperou meses para ser atendido pela Justiça, verá sua audiência adiada para daqui a alguns novos meses, pois, afinal, era dia de jogo da Copa!
Somados todos esses fatores, é fácil entender que a Copa já perdeu todo o sentido para a nação brasileira. Não por outra razão, aliás, é que a aprovação para a realização da Copa no Brasil, em novembro de 2008, que era de 79% caiu, em abril de 2014, para 48%, e os que eram contrários subiram, no mesmo período, de 10% para 41%, sendo que mais da metade dos brasileiros considera que os prejuízos serão maiores que os ganhos.

5. O prejuízo para a razão

Numa leitura otimista, o diretor-geral do Comitê Organizador Local da Copa do Mundo Fifa 2014, que se chama, por coincidência reveladora, Ricardo Trade (comércio, em inglês), prefere dar destaque ao fato de que 48% são a favor e apenas 41% são contra, avaliando, então, que o copo está meio cheio6. Só não consegue ver que o copo está esvaziando e que, de fato, nos trens e ônibus, que transportam os trabalhadores, só se fala da Copa para expressar indignação com relação às condições do transporte, da saúde, das escolas, e da falta de creches. Sintomático, aliás, o fato de que as periferias das grandes cidades não estão pintadas para a “festa” do futebol, como estavam nas Copas anteriores e isso porque, com a Copa sendo realizada aqui, é possível ver as disparidades e perceber com maior facilidade como a retórica do legado não atinge, concretamente, a vida da classe trabalhadora.
Os tais empregos gerados são precários e inseridos, sobretudo nas obras de estádios, aeroportos e vias públicas, na lógica perversa da terceirização, sendo que muitos trabalhadores ainda serão explorados sem qualquer remuneração no mal denominado trabalho “voluntário”, referido com orgulho pelo “Senhor Comércio”.
Fato é que não será mais possível assistir a um jogo da Copa, no estádio, pela TV ou nos circos armados do “Fan Fest” e se emocionar com uma jogada ou um gol, sem lembrar do preço pago: assalto à soberania; Estado de exceção; gastos públicos; abalo da confiabilidade em razão da desorganização; violências dos despejos, dos acidentes de trabalho e da repressão policial...
Sobre o Fan Fest, ademais, é oportuno esclarecer que se trata de um “evento oficial” da Copa da FIFA, que deve ser organizado e custeado pelas cidades sedes de jogos, para que os excluídos dos estádios possam assistir aos jogos por um telão, com o acompanhamento de shows. Esse evento, organizado e pago pelo Estado (que se fará em São Paulo mediante parceria com o setor privado, conforme Comunicado de Chamamento Público n. 01/2014/SMSP, que estabeleceu o prazo de uma semana para o oferecimento de ofertas), realizado em espaço público, atende aos interesses privados da FIFA e suas parceiras. No caso da cidade de São Paulo, por exemplo, o Decreto n. 55.010, de 9 de abril de 2014, assinado pela vice-prefeita em exercício, Nádia Campeão (em nova coincidência reveladora7), que regulou o evento, transforma a área pública do Fan Fest em uma área privada, reservada, como dito no Decreto, aos fãs da Copa. Nos termos expressos no Decreto: “FAN FEST: área do Vale do Anhangabaú indicada pela cidade-sede e reconhecida pela FIFA como área de lazer exclusiva aos fãs da Copa do Mundo FIFA 2014” (inciso VIII, do art. 2º.) – grifou-se
O mesmo Decreto fixa esse local, o do Fan Fest, como área de “restrição comercial”, que são “áreas definidas pelo Poder Público Municipal com perímetros restritos no entorno de locais oficiais específicos de competição, nas quais, respeitadas as normas legais existentes, fica assegurada a exclusividade prevista no artigo 11 da Lei Federal nº 12.663, de 2012, à FIFA ou a quem ela autorizar” (inciso XIII, do art. 2º.), valendo reparar que o Decreto, artificialmente, amplia, em muito, a extensão geográfica do Vale do Anhangabaú: “FAN FEST: a partir do Largo da Memória, Rua Formosa, Viaduto do Chá, Praça Ramos de Azevedo, Rua Conselheiro Crispiniano, Rua Capitão Salomão, Praça Pedro Lessa, Largo São Bento, Rua Florêncio de Abreu, Rua Boa Vista, Rua Líbero Badaró, Praça do Patriarca, alça de retorno da Av. 23 de Maio do sentido Bairro/Centro para o sentido Centro/Bairro, Av. 23 de Maio, entre o Largo da Memória e o Viaduto do Chá, conforme Anexo II deste decreto” (inciso II, do art. 3º.), atingindo até mesmo o espaço aéreo: “Os espaços aéreos correspondentes aos perímetros descritos nos incisos I e II do “caput” deste artigo também se constituem em áreas de restrição comercial” (parágrafo único do art. 3º.).
É importante saber que ao se impedir a comercialização na área reservada a Prefeitura de São Paulo acabou interrompendo um processo de negociação, iniciado em maio de 2012, com os ambulantes que atuavam na cidade e, em especial, na região central, onde se situa o Vale do Anhangabaú, e cuja licença havia sido cassada no contexto de uma política de endurecimento muito forte quanto à fiscalização de sua atuação, que fora intensificada, exatamente, a partir de 2011, quando houve a assinatura do termo de compromisso, anunciando São Paulo como uma das cidades sedes da Copa. Em 2012, acabaram sendo canceladas todas as 5.137 licenças dos ambulantes e até hoje, mesmo após instaurado, desde 2012, um grupo de trabalho tripartite – trabalhadores, sociedade civil e prefeitura (Fórum dos Ambulantes), para a discussão do problema, nada se resolveu e, em concreto, ao editar o Chamamento Público acima citado, a Prefeitura acabou dificultando sobremaneira a pretensão dos ambulantes de terem alguma atuação comercial durante a Copa. É a Copa, na verdade, fechando postos de trabalho!

6. De novo o dinheiro

Há de se considerar que todos esses efeitos já foram produzidos e continuarão repercutindo na vida real para além da Copa, ainda que o saldo econômico desta venha a ser positivo.
E se o tema é dinheiro, há de se indagar: dinheiro para quem, cara pálida? É evidente que o benefício econômico não ficará para a classe trabalhadora e sim para quem explora o trabalho ou se vale da lógica de reprodução do capital. Para o trabalhador, o dinheiro que se direciona é o fruto do trabalho realizado, que, de fato, na lógica do modelo de sociedade capitalista, não representa, jamais, o equivalente necessário para restituir à classe trabalhadora como um todo o valor do trabalho empregado no serviço ou na obra. A lógica econômica da Copa não é outra coisa senão a intensificação do processo de acumulação de riqueza por meio da exploração do trabalho alheio, sendo que se considerarmos a utilização do denominado “trabalho voluntário”, que se realizará sem qualquer custo remuneratório, a acumulação que se autoriza é ainda maior.
O tal efeito benefício econômico, a que tanto se alude, portanto, não será, obviamente, revertido à classe trabalhadora. Esta, inclusive, será enormemente prejudicada, na medida em que o dinheiro público utilizado para financiar a atividade lucrativa de índole privada foi extraído da tributação realizada sobre a riqueza produzida pelo trabalho e que, assim, deveria ser, prioritariamente, revertida ao conjunto da classe trabalhadora para a satisfação das necessidades essenciais garantidas por preceitos constitucionais: escolas, hospitais, previdência e assistência social, creches e transporte, por exemplo. É completamente ilógico dizer, como disse o diretor-geral do Comitê Organizador Local da Copa do Mundo Fifa 2014, no texto mencionado, que se está usando o dinheiro público para incentivar uma produção privada com o objetivo de, ao final, tributar essa produção e devolver o dinheiro aos cofres públicos.
O argumento seria apenas ilógico não fosse, também, digamos assim, carregado de alguns equívocos, o que o torna, portanto, muito mais grave. Ora, como adverte Maurício Alvarez da Silva, pelos termos da Lei Geral da Copa, Lei n. 12.350/10, “foi concedida à Fifa e sua subsidiária no Brasil, em relação aos fatos geradores decorrentes das atividades próprias e diretamente vinculadas à organização ou realização dos Eventos, isenção de praticamente todos os tributos federais”8 9.
Além disso, em 17 de maio de 2013, o governo federal publicou no “Diário Oficial da União decreto que concede isenção de tributos federais nas importações destinadas à Copa das Confederações neste ano e à Copa do Mundo de 2014. Entre os produtos incluídos na isenção estão alimentos, suprimentos médicos, combustível, materiais de escritório, troféus. O benefício abrange Imposto sobre Produtos Industrializados incidente na importação, Imposto de Importação, PIS/Pasep-Importação, Cofins-Importação, Taxa de utilização do Siscomex, Taxa de utilização do Mercante, Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante e Cide-combustíveis”10.
Em concreto, continuarão sendo tributados apenas as empresas nacionais, que não estejam integradas ao rol das apaziguadas da FIFA, sofrendo, ainda, com a isenção concedida às importadoras, os trabalhadores e os consumidores, sendo que o valor circulado nesta seara é ínfimo se considerarmos aquele, sem tributação, destinado à FIFA e suas parceiras e às importadoras.

7. De novo os ataques aos trabalhadores

Quando os trabalhadores, saindo da invisibilidade, se apresentam no cenário político e econômico e se expressam no sentido de que planejam uma organização coletiva para tentarem diminuir o prejuízo, buscando, por meio de reivindicações grevistas, atrair para si uma parte maior do capital posto em circulação em função da Copa, logo algum economista de plantão vem a público com a ameaça de que tais ganhos podem resultar em demissões futuras11.
Mas, essa possibilidade aventada pelos trabalhadores de se fazerem ouvir na Copa, que pode, em concreto, minimizar o prejuízo dos trabalhadores, no processo de acumulação, e do país, na evasão de riquezas, acabou provocando uma reação institucional imediata, afinal o compromisso assumido pelo Estado brasileiro foi o de permitir que a FIFA obtivesse o seu maior lucro da história12. Então, a Justiça do Trabalho se adiantou e divulgou que vai estabelecer um sistema de plantão para julgar, com a máxima celeridade (de um dia para o outro), as greves que ocorram durante a Copa, com o pressuposto já anunciado de que “as greves têm custo para os trabalhadores, empregadores e população”, sendo certo que a Copa não pode ser usada para “expor o país a uma humilhação internacional, como no Carnaval, quando houve greve de garis”13.
Pouco importa o quanto a Justiça do Trabalho, historicamente, demora para dar respostas aos direitos dos trabalhadores, no que se refere às diversas formas de violências de que são vítimas em razão das práticas de algumas empresas no que tange à falta de registro, ao não pagamento de verbas rescisórias, ao não pagamento de horas extras, ao não pagamento de indenizações por acidentes do trabalho etc. Mesmo que já tendo melhorado sobremaneira na defesa dos interesses dos trabalhadores, transmite ainda a ideia central de que o que importa é ser célere quando isso interessa ao modelo econômico, que se vale da exploração do trabalho para reproduzir o capital.
A iniciativa repressiva da Justiça, ademais, foi aplaudia, rapidamente, por editorial do jornal Folha de S. Paulo14, o qual, inclusive, em declaração, no mínimo, infeliz, chamou os trabalhadores de oportunistas:
É uma iniciativa elogiável para evitar o excesso de oportunismo sindical, que não hesita em prejudicar o público e ameaçar o principal evento do ano no país.
Ou seja, todo mundo pode ganhar, menos os trabalhadores. Parodiando a máxima penal, é como se lhes fosse dito: “tudo que vocês ganharem pode ser utilizado contra vocês mesmos...”
Como foram as condições de trabalho nas obras? Quantos trabalhadores não receberam ainda os seus direitos por serviços que prestaram para a realização da Copa? Segundo preconizado pelo viés dessa preocupação, nada disso vem ao caso... Na visão dos que só veem imperativo obrigacional de realizar a Copa, como questão de honra, custe o que custar, o que importa é que o “público” receba o proveito dos serviços dos trabalhadores e se estes não ganham salário digno ou se trabalham em condições indignas não há como trazer à tona, para não impedir a realização do evento e para não abalar a imagem no Brasil lá fora.
Mas, concretamente, que situação pode constranger mais a figura do Brasil no exterior? O Brasil que faz greves? Ou o Brasil em que os trabalhadores são submetidos a condições subumanas de trabalho e que não permite que esses mesmos trabalhadores, em geral invisíveis aos olhos das instituições brasileiras, se insurjam contra essa situação, tendo que aproveitar o momento de um grande evento para, enfim, ganhar visibilidade, inclusive, internacional?
Na verdade, a humilhação internacional, a qual não se quer submeter o Brasil, é a de que o mundo saiba como o capitalismo aqui se desenvolve, ainda marcado pelos resquícios culturais de quase 400 anos de escravidão e sem sequer os limites concretos da eficácia dos Direitos Humanos e dos direitos sociais, promovendo, em concreto, uma das sociedades mais injustas da terra.

8. O perverso legado das condições de trabalho na Copa

Do ponto de vista da realidade, é preciso consignar que a pressa na execução das obras ainda tem aumentado a espoliação da classe trabalhadora com elevação das jornadas de trabalho, cuja retribuição, ainda que paga, nunca é suficiente para atingir o nível da equivalência, ainda mais quando são implementadas fórmulas jurídicas fugidias do efetivo pagamento (banco de horas, compensações etc.). O trabalho em jornadas extraordinárias, ademais, gera um desgaste físico e mental do trabalhador que não é computado e não se compensa por pagamento.
Além dos acidentes do trabalho citados inicialmente, portanto, é importante adicionar ao legado da Copa para a classe trabalhadora as más condições de trabalho, caracterizadas pela elevação das jornadas de trabalho, pelo aumento do ritmo do trabalho e da pressão pela celeridade.
O relato de alguns fatos, extraídos do noticiário jornalístico, auxilia na visualização desse contexto de supressão de direitos dos trabalhadores no período de preparação para a Copa.
Em setembro de 2013, 111 migrantes, vindos do Maranhão, Sergipe, Bahia e Pernambuco foram encontrados em condições análogas à de escravos na obra de ampliação do aeroporto de Guarulhos/SP, o mais movimentado da América Latina, sob a responsabilidade da empresa OAS, que além de ser uma das maiores construtoras do Brasil, é também a terceira empresa que mais faz doações a candidatos de cargos políticos, segundo levantamento do jornal Folha de S. Paulo, sendo uma das quatro empresas que formam o consórcio Invepar que, junto com a Airports Company South Africa, detêm 51% da sociedade com a Infraero para a administração do Aeroporto Internacional de Guarulhos através da GRU Airport e que para as obras de ampliação do aeroporto, onde foi flagrado trabalho escravo, obteve do BNDES um empréstimo-ponte de R$ 1,2 bilhões.
E a OAS, evidentemente, declarou que “vem apurando e tomando todas as providências necessárias para atender às solicitações” do Ministério do Trabalho e Emprego, negando que as vítimas fossem suas empregadas ou que tivesse tido qualquer “participação no incidente relatado”15.
Até abril de 2012, conforme reportagem de Vinícius Segalla16, oito dos doze estádios da Copa já haviam enfrentado greves, atingindo 92 dias de paralisação, sendo o recorde do Maracanã, no Rio de Janeiro, com 24 dias. As reivindicações foram variadas, indo desde questões ligadas à remuneração até o desrespeito de direitos como pagamento de horas extras e fornecimento de planos de saúde. Segundo a reportagem, “Em uma das quatro paralisações já ocorridas em Pernambuco, no início de novembro do ano passado, o motivo foi a forma como a Odebrecht lidou com as reivindicações dos trabalhadores. É que a empreiteira demitiu dois funcionários da arena que eram membros da Cipa (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes) porque eles teriam incitado os trabalhadores a fazer greve. A demissão dos operários, junto com denúncias de assédio moral supostamente praticados pelo responsável pela segurança do canteiro, levou os funcionários a decretar greve.”
Também nos termos da reportagem, “a empresa explicou ao UOL Esporte que ‘Os dois empregados membros da Cipa foram demitidos por justa causa, por cometimento de flagrante ato de indisciplina, quando, no último dia 31 de outubro, instigaram os colegas a paralisarem a obra da Arena da Copa, sem nenhuma razão plausível’.” Embora, depois, por meio de nota tenha dito que as dispensas se deram sem justa causa.
A situação, revela a mesma reportagem, foi também bastante séria na greve do Maracanã, em setembro de 2011, cuja motivação, segundo Nilson Duarte, presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Pesada (Sitraicp), teria sido o fato de que “foram servidos aos cerca de 2.000 trabalhadores da obra macarrão e feijão estragados, salada com bichos e leite fora da validade”, o que fora negado pelo Consórcio Maracanã (Odebrecht, Delta e Andrade Gutierrez), por meio de nota. O local já havia sido alvo de uma greve, um mês antes, agosto de 2011, por causa de uma explosão no canteiro que feriu um trabalhador.
Relata-se, ainda, que em Manaus (AM), na Arena Amazônia, houve paralisação de um dia, em 22 de março de 2012, porque conta do valor da cesta básica que estava sendo paga aos operários, R$ 37, enquanto que “de acordo com pesquisa do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), o valor da cesta básica, composta por 12 produtos, fechou o mês de março a um custo R$ 251,38 na capital amazonense”, tendo a greve se encerrado com o aumento da cesta para R$ 60, acompanhado da promessa da empresa de que iria “voltar a pagar hora extra aos sábados, o que parara de fazer três meses antes”.
Na arena de Pernambuco, no início de 2012, foi promovida a dispensa coletiva de 560 empregados, conforme destacado em reportagem de Paulo Henrique Tavares17, que vale a pena reproduzir:
A sexta-feira marcou a volta aos trabalhos dos operários responsáveis pela construção da Arena Pernambuco, na cidade de São Lourenço da Mata. E como “boas-vindas”, 560 trabalhadores acabaram recebendo o comunicado de demissão. A expectativa da comissão organizadora da recente greve, que paralisou as obras do estádio por oito dias, é de que outros mil funcionários peçam a carta de dispensa até o fim da tarde.
Por considerar “abusiva e ilegal”, o Tribunal Regional do Trabalho (TRT-PE) exigiu, na quinta-feira, a volta aos trabalhos dos grevistas, com penalidade de R$ 5 mil, por dia, ao sindicato da categoria, o Sintepav, em caso de descumprimento. Apesar da obrigatoriedade, a ideia dos remanescentes nas obras da Arena Pernambuco é praticar – como os próprios denominam – uma “operação tartaruga”.
“Eu vim preparado para ser demitido. Como não fui, a maneira que encontrei para ajudar meus companheiros é trabalhar de maneira lenta. Cada prego desta Arena irá demorar pelo menos um dia, para ser colocado”, disse um trabalhador, que preferiu não ser identificado. “Eu não tenho prazo para terminar a obra. Quem tem prazo é o governo.”
Antes das demissões, as obras para a Arena da Copa contavam com 2.437 trabalhadores. Já contando com as saídas desta sexta-feira, cerca de 250 novos operários se apresentaram para o trabalho, em São Lourenço da Mata. “Pelo número de polícias que estão aqui na obra hoje, acredito que eles e o governador Eduardo Campo devem colocar a mão na massa para levantar o estádio até a Copa do Mundo”, falou, em tom irônico, um dos novos desempregados.
Entre as reivindicações, os trabalhadores exigiam aumento de benefícios, como cesta básica de R$ 80 para R$ 120, maior participação nos lucros e resultados (PLR), Plano de Saúde para os profissionais e ajudantes, além de abono dos dias parados e estabilidade de um ano para a comissão dos trabalhadores.
A questão pertinente às condições de trabalho chegou a tal extremo que, na Arena do Grêmio (que não está integrada aos jogos da Copa, mas se alimenta da mesma lógica), em outubro de 2011, os próprios trabalhadores pediram sua demissão18, como “forma de protesto pelas condições de trabalho impostas pela empreiteira. A maioria dos trabalhadores é do Maranhão e retornará ainda hoje para seu estado natal.”
No estádio do Itaquerão, os operários disseram, em janeiro de 2014, à reportagem do UOL19 que estavam recebem salário “por fora” (que impede a tributação e não se integra aos demais direitos dos trabalhadores), “para trabalhar mais do que o previsto pelo acordo e evitar que a inauguração do palco de abertura da Copa do Mundo atrase ainda mais”. Segundo consta da reportagem, “Um soldador que trabalha na obra contou à reportagem que espera receber um salário quatro vezes maior do que o normal neste mês devido às horas extras irregulares que está fazendo”.
Segundo a reportagem, o acordo em questão, firmado com o aval do Ministério do Trabalho e Emprego, em 19 de dezembro de 2013, foi o de que estaria autorizado o trabalho em até duas horas extras diariamente, sendo que, anteriormente, dizem os trabalhadores, havia jornadas de até 16 horas. E, presentemente, as horas além das duas extras permitidas, que já é, por si, grave afronta à Constituição, eram trabalhadas sem marcação em cartão de ponto. "Eles [os chefes] falam para a gente: 'Não pode atrasar'. Ainda tem muita coisa pra fazer e às vezes é melhor mesmo você trabalhar umas horinhas a mais num dia para terminar uma tarefa e já começa num ponto mais a frente no dia seguinte", disse à reportagem um ajudante de pedreiro, de 23 anos, que, assim como os outros trabalhadores que conversaram com o UOL Esporte, pediu para não ser identificado.
Nos termos da reportagem, “Além do medo de perder o salário adicional, os funcionários da construtora disseram que foram orientados a não dar entrevistas. ‘Teve uma palestra no fim do ano para falar pra gente tomar cuidado com a imprensa, pra não ficar falando qualquer coisa porque isso só atrapalha a gente’, declara o ajudante de pedreiro.”
Como revela notícia publicada no jornal Folha de S. Paulo, edição de 23/03/14 (p. D-4), foram flagrados pelos jornalistas trabalhadores executando suas tarefas sem as mínimas condições de segurança e de uma subsistência digna em obra do centro de treinamento da seleção da Alemanha no sul da Bahia (Santa Cruz Cabrália).

9. O atentado histórico à classe trabalhadora

A maior parte dos problemas vivenciados pelos trabalhadores nas obras da Copa está ligada à sua submissão ao processo de terceirização e de precarização das condições de trabalho, que acabaram sendo acatados, sem resistência institucional contundente, durante o período de preparação para a Copa, interrompendo o curso histórico que era, até então, de intensa luta pela melhoria das condições de trabalho no setor da construção civil, que é o recordista, vale destacar, em acidentes do trabalho. Essa luta, implementada pelo Ministério Público do Trabalho, tendo como ponto essencial o combate à terceirização, entendida como fator principal da precariedade que gera acidentes, já havia sido, inclusive, encampada pelo Governo Federal, em 2012, ao se integrar, em 27 de abril, ao Plano Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho.
O fato é que o evento Copa, diante da necessidade de se acelerarem as obras, acabou por jogar por terra quase toda, senão toda, a racionalidade que já havia sido produzida a respeito do assunto pertinente ao combate à terceirização no setor da construção civil, chegando-se mesmo ao cúmulo do próprio Superintendente Regional do Trabalho e emprego de São Paulo, vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego, Luiz Antônio Medeiros, um ex-sindicalista, declarar, sobre as condições de trabalho no Itaquerão, que: “Se esse estádio não fosse da Copa, os auditores teriam feito um auto de infração por trabalho precário e paralisado a obra. Estamos fazendo de conta que não vemos algumas irregularidades” (entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, em 03/04/14).
O período da preparação para a Copa, portanto, pode ser apontado como um atentado histórico à classe trabalhadora, que jamais será compensado pelo aludido “aumento de empregos”, até porque, como dito, tais empregos, no geral, se deram por formas precárias. Nas obras o que se viu e se vê – embora não seja visto pelo Ministério do Trabalho e Emprego – são processos de terceirização e quarteirização, sem uma oposição institucional, que, por conseqüência, produz o legado de grave retrocesso sobre o tema, que tende a se estender, perigosamente, para o período posterior à Copa.
Não se pode esquecer que quase todos os acidentes fatais acima mencionados, não por coincidência, atingiram trabalhadores terceirizados, e o Estado de exceção, acoplado ao silêncio institucional sobre as formas de exploração do trabalho (exceção feita a algumas iniciativas individualizadas de membros do Ministério Público do Trabalho) e acatado para garantir a Copa, acabaram servindo como uma luva a certas frações do setor econômico, que serão as únicas, repita-se, que verdadeiramente, se beneficiarão do evento, para desferir novo ataque aos trabalhadores, representado pela tentativa de fuga de responsabilidade da empresa responsável pela obra, transferindo-a à empresa contratada (terceirizada), que possui, como se sabe, quase sempre, irrisório suporte financeiro para arcar com os riscos econômicos envolvidos.
Sobre a morte de José Afonso de Oliveira Rodrigues, a construtora Andrade Gutierrez, responsável pela construção da arena em Manaus, defendeu-se, publicamente, dizendo que Martins trabalhava para a Martifer, empresa contratada para fazer as estruturas metálicas da fachada e da cobertura.
Quando da morte de Marcleudo de Melo Ferreira, também na obra da arena de Manaus, a Andrade Gutierrez repetiu a estratégia, expressando-se em nota:
É com pesar que a Construtora Andrade Gutierrez informa que por volta das 4h da manhã de hoje, 14/12/2013, o operário Marcleudo de Melo Ferreira, 22 anos, natural de Limoeiro do Norte – CE, funcionário de empresa subcontratada que presta serviços na montagem da cobertura da Arena da Amazônia, sofreu uma queda de uma altura de cerca de 35 metros, sendo socorrido e levado ao Pronto Socorro 28 de Agosto ainda com vida, onde não resistiu aos ferimentos e veio a falecer nesta manhã.
Reiteramos o compromisso assumido com a segurança de todos os funcionários e que uma investigação interna está sendo feita para apurar as causas do acidente. As medidas legais estão sendo tomadas em conjunto com os órgãos competentes. Lamentamos profundamente o acidente ocorrido e estamos prestando total assistência à família do operário. Em respeito à memória do mesmo, os trabalhos deste sábado foram interrompidos. – grifou-se
Igual postura foi adotada pela Odebrecht Infraestrutura, responsável pela obra do Itaquerão, no que tange às mortes de Fábio Luiz Pereira e Ronaldo Oliveira dos Santos. Eis a nota publicada:
A Odebrecht Infraestrutura e o Sport Club Corinthians Paulista lamentam informar que no início da tarde de hoje um acidente na obra da Arena Corinthians provocou o falecimento de dois trabalhadores – Fábio Luiz Pereira, 42,motorista/operador de Munck da empresa BHM, e Ronaldo Oliveira dos Santos, 44 anos, montador da empresa Conecta. Pouco antes das 13 horas, o guindaste, que içava o último módulo da estrutura da cobertura metálica do estádio, tombou provocando a queda da peça sobre parte da área de circulação do prédio leste – atingindo parcialmente a fachada em LED. A estrutura da arquibancada não foi comprometida. Era a 38ª vez que esse tipo de procedimento realizava-se na obra e uma peça de igual proporção foi instalada há pouco mais de uma semana no setor Sul do estádio. Equipes do corpo de bombeiros estão no local. No momento, todos os esforços estão concentrados para oferecer assistência total às famílias das vítimas.
E para demonstrar que a terceirização, com a utilização da estratégia de se eximir de responsabilidade, não é privilegio da iniciativa privada, quando houve a morte de José Antônio do Nascimento na obra do Centro de Convenções do Amazonas, desenvolvida pelo Centro de Gestão Metropolitana do Município de Manaus ao lado da Arena da Amazônia, a entidade em questão expediu a seguinte nota:
O funcionário da Conserge, empresa que presta serviço para a Unidade de Gestão Metropolitana, José Antônio da Silva Nascimento, de 49 anos, morreu de infarto por volta das 9h da manhã deste sábado (14 de dezembro), quando trabalhava nos serviços de limpeza e terraplanagem para o asfaltamento do Centro de Convenções da Amazônia, localizado na Avenida Pedro Teixeira.
José Antônio se sentiu mal quando subiu em uma caçamba. Uma ambulância do Samu foi acionada imediatamente para realizar o atendimento, mas o trabalhador não resistiu. A Conserge está dando toda a assistência necessária à família da vítima.
Segundo a família de José Antônio, este trabalhava sob pressão devido ao atraso na obra. "Ele trabalhava de domingo a domingo", afirmou sua cunhada, Priscila Soares.
Por ocasião da morte de Antônio José Pitta Martins, técnico especializado em operações de guindastes de grande porte, que veio de Portugal para trabalhar na obra da Arena da Amazônia, tendo sido atingido na cabeça por uma peça de ferro que se soltou de um guindaste, novamente a fala se repete. Em nota oficial, a empresa responsável técnica pela obra, Andrade Gutierrez, destaca que o trabalhador não era seu empregado, ao mesmo tempo em que deixa claro que “o acidente não interferiu no seguimento das obras”
Eis o teor da nota:
NOTA DE ESCLARECIMENTO
A Construtora Andrade Gutierrez informa que, por volta das 8h da manhã de hoje, 07/02/2014, um técnico de guindaste de grande porte, funcionário da empresa Martifer, sofreu um acidente nas dependências do sambódromo enquanto desmontava a máquina utilizada nas obras da Arena da Amazônia. O guindaste, que auxiliava os trabalhos da Arena, já estava com as operações encerradas desde 11/01/2014 e desmobilizado em uma área externa. O operador foi socorrido pela equipe de Segurança do Trabalho e levado pelo SAMU até o hospital 28 de Agosto, onde teve seu quadro de saúde estabilizado e foi transferido para o hospital João Lúcio. O acidente não interferiu no seguimento das obras da Arena da Amazônia. – grifou-se
A empresa Martifer Construções Metalomecânica S/A, por sua vez, emitiu nota de pesar, noticiando que iria “apurar as causas do acidente"20.
A última morte foi a de Fabio Hamilton da Cruz, que se deu em acidente ocorrido no Itaquerão, após uma queda de oito metros de altura. Fabio, conforme foi várias vezes frisado pelos envolvidos, com difusão na imprensa, era empregado da WDS, uma subcontratada da Fast Engenharia, que fora contratada pela AmBev, que aceitou bancar os 38 milhões de reais para colocação de arquibancadas provisórias, exigidas pela FIFA para que o estádio tivesse a capacidade de público necessária para receber a abertura da Copa do Mundo21.

10. A culpabilização das vítimas

A respeito do acidente de Fábio Hamilton da Cruz, o Delegado designado para verificação do ocorrido, após ouvir alguns relatos, um dia depois do ocorrido, sem a realização de qualquer laudo técnico, já concluiu que teria havido um" excesso de confiança "da vítima.
Essa foi, ademais, outra forma de agressão aos direitos dos trabalhadores que a pressa para a realização da Copa acabou reforçando, a da culpabilização da vítima nos acidentes do trabalho.
Ora, como o próprio nome diz, o acidente do trabalho é um sinistro que se dá em função da realização de trabalho em benefício alheio, ao qual, independente da postura da vítima, fica obrigado a reparar o dano, já que o risco da atividade econômica lhe pertence (art. . Da CLT) e, consequentemente, é de sua responsabilidade o cuidado com o meio ambiente de trabalho.
É extremamente agressivo à inteligência humana, servindo, inclusive para fazer prolongar no tempo o sofrimento da vítima ou de seus familiares, o argumento, daquele que explora com proveito econômico o trabalho alheio, de que “vai apurar” o ocorrido, deixando transparecer no ar uma acusação, que nem sempre é velada, de que a culpa pelo acidente foi do trabalhador.
Veja-se, por exemplo, o que se passou no caso do Raimundo Nonato Lima Costa, que morreu após uma queda de 35 metros na Arena da Amazônia. Em nota de pesar pela sua morte, a responsável técnica pela obra não teve o menor receio, inclusive, de fazer uma acusação generalizada aos trabalhadores, apontando-os como responsáveis por sua própria segurança. Diz a nota.
NOTA DE PESAR
A Andrade Gutierrez lamenta a morte do operário Raimundo Nonato Lima Costa, ocorrida na noite desta quinta-feira, durante o turno noturno da obra da Arena da Amazônia. A empresa providenciou apoio imediato à família do funcionário e aguarda o resultado dos trabalhos da perícia técnica que foi iniciada pela Polícia Civil com o objetivo de apurar as causas do ocorrido.
A Andrade Gutierrez reitera o compromisso assumido com a segurança de todos os seus funcionários e informa que intensificará o trabalho de conscientização dos operários com foco na prevenção de acidentes.
Por ocasião da morte de Marcleudo de Melo Ferreira, na mesma Arena, já mencionada acima, o secretário da Copa em Manaus, Miguel Capobiango, foi além na agressão aos trabalhadores e desferiu o ataque de que as duas quedas fatais até então havidas na Arena tinham sido fruto do" relaxo "dos operários na utilização dos equipamentos de segurança."Usar o equipamento de segurança às vezes é chato e nem todos gostam de estar usando. O operário às vezes abre mão por preguiça, então ele relaxa, e é isso que agora nós não podemos deixar"."Infelizmente, os dois acidentes aconteceram por uma questão básica de não cuidado do trabalhador no uso correto do equipamento."22
E, sobre a morte de Fabio Hamilton da Cruz no estádio no Itaquerão, disse Andrés Sanches:"Na vida, cometemos erros e excessos. Já dirigi carro a 150 km/h. Eu não bebo. Vocês já devem ter dirigido "mamados". Infelizmente, cometemos erros que acabam em fatalidade. Realmente, é padrão na construção civil."23

11. O retrocesso social e humano da Copa

Bem se vê que o legado maléfico para os trabalhadores brasileiros com a Copa não está apenas nas más condições de trabalho e nos conseqüentes oito acidentes fatais (não se contando aqui os vários outros acidentes do trabalho que não resultaram em óbito24), o que, por si, já constitui um grande prejuízo, ainda mais se lembrarmos que as obras para a Copa da África em 2010 deixaram 02 mortes por acidente do trabalho, está também na tentativa explícita de culpar as vítimas, buscando atingir a uma impunidade que reforça a lógica de uma exploração do trabalho alheio pautada pela desconsideração da dignidade humana.
A Copa já trouxe grandes prejuízos à classe trabalhadora e é preciso impedir que se consagrem e se prolonguem, mansa e silenciosamente, para o período pós-Copa. Não tendo sido possível obstar que o Estado de exceção se instaurasse na Copa é essencial, ao menos, não permitir que ele continue produzindo efeitos.
O passo fundamental é o de recuperar a consciência, pois a porta aberta às concessões morais e éticas para atender aos interesses econômicos na realização da Copa tem deixado passar a própria dignidade, o que resta demonstrado nas manifestações que tentam justificar o injustificável apenas para não permitir qualquer abalo na “organização” do evento. Foi assim, por exemplo, que o maior atleta do século XX e melhor jogador de futebol de todos os tempos, o eterno Pelé, chegou a sugerir, mesmo que não tenha tido uma intenção malévola, que mortes em obras são fatos que acontecem, “são coisas da vida” e que se preocupava mesmo era com o atraso nas obras dos aeroportos; que o competente e carismático técnico da seleção brasileira, Luiz Felipe Scolari, ainda que sem querer ofender, afirmou que a solução para o problema do racismo no futebol é ignorar os “babacas” que cometem tais ofensas, pois puni-los não resolve nada; e que o Ministro de Minas e Energia, Edson Lobão, cogitou pedir para que os cidadãos brasileiros economizassem energia a fim de que não faltasse luz na Copa.
A postura subserviente, para satisfazer os interesses da FIFA, chegou ao ponto extremo de algumas cidades, como Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Cuiabá, Natal e Fortaleza, terem atendido pedido feito, com a maior cara de pau do mundo, pelo secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke, para que as cidades sedes de jogos da Copa concedessem transporte gratuito – algo que o Movimento Passe Livre está lutando, e sofrendo, para conseguir há anos –, sendo que a concessão, diversamente do que tem buscado o MPL, não se destina às pessoas necessitadas, mas aos torcedores dos jogos da Copa, que possuem condições financeiras para pagar os altos preços dos ingressos, que chegaram a ser vendidos, no paralelo, por até R$91 mil...
É de suma importância deixar claro, para a nossa compreensão e para a nossa imagem no mundo, que temos a percepção de todos esses problemas, que não o aprovamos e que estamos dispostos a enfrentá-los e superá-los.
O autêntico efeito positivo da Copa – realizada, ou não – será a constatação de que a classe trabalhadora se encontra em um estágio de consciência que lhe permite compreender que a Copa reforça e intensifica a lógica da exploração do trabalho como fonte reprodutora do capital, favorecendo ao processo de acumulação da riqueza, ao mesmo tempo em que permite a institucionalização de uma evasão oficial de divisas. A partir dessa compreensão, a classe trabalhadora não se deixará levar pela retórica de que o dinheiro dos turistas vai estimular o crescimento e gerar empregos, até porque ao se inserir na mesma lógica capitalista o dinheiro não é revertido à classe trabalhadora, à qual apenas é remunerada, sem o necessário equivalente, pelo trabalho prestado, direcionando-se, pois, a maior parcela do dinheiro em circulação em função da Copa às multinacionais aqui instaladas, especialmente no setor hoteleiro e nas companhias aéreas.
Cada trabalhador, pensando em sua atividade e em seu cotidiano de ganho e de trabalho durante a Copa, ou antes, que responda: teve ou terá algum ganho na Copa que não provenha do trabalho? Este trabalho é prestado em que condições? O eventual acréscimo de ganho está ligado ao aumento da quantidade de trabalho prestado? Que o digam, sobretudo, os jornalistas!
Claro que uma ou outra experiência comercial exitosa, desvinculada da dos protegidos da FIFA, pode ocorrer, mas isso por exceção. E, cumpre repetir: mesmo que no geral a Copa produza resultados econômicos satisfatórios, não se terão, com isso, justificadas as supressões da ordem jurídica constitucional, já havidas no período de preparação para o evento, e as violências sofridas por diversas pessoas, e, em especial, a classe trabalhadora, no que tange aos seus direitos sociais e humanos.
Este é o ponto fundamental: o de não permitir que a Copa e a violência institucional posta a seu serviço furtem a nossa consciência, que está sendo duramente construída, vale lembrar, após 21 anos de ditadura, seguida de 15 anos de propaganda neoliberal. A produção dessa consciência é extremamente relevante para que o drama das diversas pessoas, vitimadas pela Copa, não se arraste por muito mais tempo, sofrimento que, ademais, só aumenta quando, buscando não abalar eventual euforia da Copa, se tenta desconsiderar a sua dor, ou quando, partindo de uma perversão da realidade, argumenta-se que as pessoas que são contra a Copa (mesmo se apoiadas nos motivos acima mencionados) fazem parte de uma conspiração para “contaminar” a Copa, apontadas como adeptas da “violência”, sendo que para a ação dessas pessoas (que, de fato, carregam um dado de consciência), o que se reserva é o contra-argumento da “segurança pesada”25.
O desafio está lançado. O que vai acontecer nos jogos da Copa, se a “seleção canarinho” vai se sagrar hexa campeã, ou não, não é decisivo para a história brasileira. Já o tipo de racionalidade e de reação que produzirmos diante dos fatos sociais e jurídicos extremamente graves relacionados ao evento vai, certamente, determinar qual o tipo de sociedade teremos na sequência. Boa ou ruim, a Copa acaba e a vida concreta continua e será boa ou ruim na medida da nossa capacidade de compreendê-la e de interagir com ela, pois como já disse Drummond:
Foi-se a Copa? Não faz mal. Adeus chutes e sistemas. A gente pode, afinal, cuidar de nossos problemas.
Faltou inflação de pontos? Perdura a inflação de fato. Deixaremos de ser tontos se chutarmos no alvo exato.
O povo, noutro torneio, havendo tenacidade, ganhará, rijo, e de cheio, A Copa da Liberdade.
São Paulo, 21 de abril de 2014.

*Jorge Luiz Souto Maioré professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP e membro da AJD – Associação Juízes para a Democracia.